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A Constituição Municipal de Santos - 1894

A cidade de Santos, ao longo do século XIX, vinha enfrentando problemas sanitários, que originavam e propagavam diferentes epidemias, como já foi mencionado anteriormente, sendo deixada à própria sorte pelos governos estadual e federal. Estes só voltaram seus olhos para a cidade com o desenvolvimento do comércio de exportação, principalmente de café, no final deste século, quando passaram a ingerir nos negócios da cidade, segundo seus interesses.
Conforme já visto, com a Proclamação da República, o governo municipal passa das Câmaras para os Conselhos de Intendências. A Constituição Federal e depois a Constituição Estadual de São Paulo estabelecem algumas diretrizes, mas deixam a cargo dos municípios sua própria organização administrativa.
A legislatura de 1892 a 1895 é a primeira da República eleita pelo povo e nela estão sujeitos que participaram ativamente do movimento, bem como dos conflitos republicanos, como a Revolta da Armada.
O primeiro grupo de Intendentes eleitos em Santos em 1892 promulgou uma Constituição Municipal dois anos depois. Entre eles, estavam apoiadores da Revolta da Armada e apoiadores dos Movimentos Operários, como Manuel Maria Tourinho e Olympio Lima. Nesse embate,pode-se perceber sujeitos que tentaram colocar em prática suas concepções de república, além do confronto político e de ideias.
Essa Lei tinha notadamente caráter de autonomia para o Município frente ao poder do Estado, e também pontos considerados de vanguarda, como o voto feminino, a criação de um órgão para julgar casos de improbidade administrativa e o destaque dado à educação.
Uma das questões é saber se havia mesmo uma concepção “avançada” de república, de educação, ou “apenas” disputa por poder fixação de uma posição política. Os debates nas sessões da Câmara Municipal podem fornecer indícios que auxiliem na compreensão da educação no período.
Santos teve importante participação no movimento para a abolição da escravidão e na propaganda republicana, sendo palco de discussões e circulação de ideias no final do século XIX.
A cidade vinha enfrentando, por vários anos, problemas sanitários, que originavam e propagavam diferentes epidemias, sendo deixada à própria sorte pelos governos estadual e federal. Estes só voltaram seus olhos para a cidade com o desenvolvimento do comércio de exportação, principalmente de café, no final do século XIX, quando passaram a interferir nos negócios da cidade, segundo seus interesses.
Diante dessas forças que agiam na cidade, os grupos de políticos e intelectuais se dividiram entre aqueles alinhados ao governo do Estado e aqueles que pretendiam maior autonomia para Santos, cada um dos grupos procurando defender os ideais republicanos segundo suas representações.
É nesse contexto que , em 1894, é confeccionada pela primeira Câmara Santista de vereadores eleitos no regime republicano e aprovada pela Intendência Municipal da Cidade a Constituição Municipal de Santos, primeira e única de uma cidade do Brasil. Uma Constituição Política, na qual está clara a intenção de autogovernar-se sem interferências do governo federal ou estadual.
Vicente de Carvalho foi o autor do texto e diversos vereadores fizeram suas contribuições e/ou assinaram a Constituição. Entre eles, o então presidente do Conselho de Intendência, Manuel Maria Tourinho, os jornalistas Antônio Manuel Fernandes, Olímpio Lima e Alberto Veiga, e ainda José André do Sacramento Macuco, José Caetano Munhoz, Alexandre José de Melo Júnior, João Braz de Azevedo, Antônio Vieira de Figueiredo e Augusto Filgueira, todos atuantes na sociedade de Santos e com participação ativa nos movimentos republicanos e pela abolição em Santos.
Chama a atenção o fato de ser usado o termo Constituição,reservado apenas às Cartas Políticas dos Estados e da Federação. Além disso, a Constituição Santista continha artigos de vanguarda para a época, como, por exemplo, a permissão do voto feminino (só permitido no Brasil em 1934), o estabelecimento de remuneração para os vereadores somente para as sessões em que comparecessem, a criação de um órgão julgador dos atos de responsabilidade do prefeito, entre outros.
Essa Constituição, já em seu primeiro artigo, proclamava Santos como uma cidade autônoma e soberana em seu território, deixando clara a intenção de maior liberdade para cuidar dos interesses municipais.
No entanto, a Constituição Santista teve vida curta e, após protestos do grupo alinhado ao governo estadual, foi anulada pela Assembleia dos Deputados do Estado, sob a alegação de ser considerada contrária à Constituição de São Paulo e à Lei que regia os municípios.
O Regime Republicano foi inaugurado e muitos dos seus principais defensores assumiram cargos nos governos federal e estadual, defendendo seus ideais. Podemos perceber que autores da Constituição de Santos tinham em mente uma concepção de república diferente. Tudo leva a crer que a representação de república dos constituintes santistas valorizava a ideia de autonomia do município de Santos, rebelando-se contra a ingerência de poderes externos na administração e interesses da cidade.
Não se pretende fazer aqui uma análise jurídica da Constituição Política do Município de Santos, mas, como ensinado por Edward Thompson,procurar perceber a importância do estudo da lei para entender as ideias, conflitos e tendências da sociedade, atentando-se à cultura e aos costumes da qual surge:
[...] as regras e categorias jurídicas penetram em todos os níveis da sociedade, efetuam definições verticais e horizontais dos direitos e status dos homens e contribuem para a autodefinição ou senso de identidade dos homens. Como tal, a lei não foi apenas imposta de cima sobre os homens; tem sido um meio onde outros conflitos sociais têm se travado (1987, p. 358).
A lei tem várias dimensões: não é apenas um resultado da expressão ideológica das camadas dominantes, mas a legislação pode revelar importantes informações sobre as disputas, imposições e reivindicações dos grupos sociais. Dessa forma ela, é ao mesmo tempo arena e “troféu” das lutas sócio-políticas. Ao estudar uma lei, é importante tentar conhecê-la não apenas como uma parte do ordenamento jurídico, mas principalmente como meio de manifestação de uma prática social.
Nesse sentido, a nova Constituição traz muitos dados relevantes para perceber os avanços e diferenças com relação à legislação municipal até então. Essas divergências de opinião ou posição política vão resultar nos conflitos que provocaram sua anulação. Isso mostra que havia concepções de república diferentes entre os grupos políticos de então.
Logo em seu primeiro artigo, a Constituição ressalta sua intenção de autonomia:
Art. 1º O Município de Santos é autônomo na esphera de sua economia própria e nos assuntos de seu peculiar interesse. A sua soberania se estende por todo seu território[...]. (grifo nosso)
 Tal afirmação deixa bem clara a intenção de autonomia da cidade frente à ingerência dos poderes estadual e federal, ainda que não rompa diretamente com esses poderes, pois se insere como parte do Estado de São Paulo e submissa à Constituição Federal.
A Carta traz o termo soberania - que geralmente é utilizado somente para Estados Nacionais - para se referir ao poder de supremacia que o Estado tem sobre os indivíduos e os grupos que formam sua população, e de independência com relação aos demais Estados.
A Carta Municipal contêm 53 artigos e divide-se em duas partes, cada uma com três seções. A Primeira trata da Organização do Município, abordando temas como Assembleia Municipal e suas atribuições, as formas de feitura das leis e resoluções, depois dos cargos de Prefeito e Subprefeito, sua eleição e atribuições, e termina dispondo sobre a Câmara de Recursos. A Segunda Parte refere-se às Disposições Gerais, da Revisão Constitucional e das Disposições Transitórias.
Os poderes legislativo e executivo, até então a cargo de um único órgão (a Intendência), são separados. A Constituição apresenta o Poder Legislativo, exercido pela Câmara (chamada de Assembleia Municipal), e o poder Executivo, exercido por um Prefeito:
Art. 14. Compete à Assembleia Municipal, além da atribuição geral de, nos limites da soberania do município, fazer leis, interpretá-las, suspende-las e revoga-las
Art. 22. O poder executivo é exercido pelo Prefeito municipal.
Foi criada ainda a Câmara de Recursos (artigos 38 a 40), órgão composto por três membros eleitos em conjunto com o prefeito e responsável por julgar os atos de improbidade administrativa do Prefeito, Vice-Prefeito e membros da Assembleia Municipal; tratar dos recursos interpostos relativos aos crimes cometidos no exercício dos cargos públicos e à má gestão municipal; julgar problemas com relação à inclusão no alistamento eleitoral; e reclamações sobre eleição para qualquer cargo municipal.
Nessa organização, percebe-se a tendência mais democrática que possui essa representação de administração republicana do município, pois chama o órgão legislativo de Assembleia Municipal, com conotação democrática, além de separar o poder executivo do legislativo.
Outro ponto de favorecimento da participação democrática é o artigo 4º, parágrafo único, que estabelece a proporção de um vereador para cada dois mil habitantes indicando que os autores da Lei tinham em mente a ideia de república com mais representatividade. Vejamos:
Desde que se proceda ao recenseamento da população do município, a Assembleia compor-se-ha de tantos Vereadores quantos dous mil habitantes houver; nunca podendo, porém exceder em numero a dezoito.
A ideia de participação popular aparece também na disposição de eleição direta para Prefeito. E ainda na representação de todos os estratos da população, especialmente das minorias, como o disposto no artigo 41:
Na eleição para os cargos municipais observar-se-hao, além das condições de elegibilidade, já contidas na presente Constituição, o princípio da representação das minorias, devendo a lei eleitoral adotar para esse fim o meio mais eficaz.
A questão da cidadania e direito a voto foi contemplada na Constituição Municipal também ao estabelecer que todos os homens maiores de 21 anos seriam eleitores, assim como as mulheres:
Artigo 42. Serão eleitores municipais os cidadãos maiores de vinte e um anos, e as mulheres sui juris e exercendo profissão honesta; sabendo ler e escrever e residindo no município há mais de um ano.
A Constituição Federal se omitiu com relação aos direitos políticos da mulher, possibilitando aos estados tratar da matéria. A Constituição Santista quis garantir tal direito à mulher, e o fez pela primeira vez no país, ainda que tenha sido anulada logo em seguida.
Note-se que tal disposição foi muito avançada para o período, já que o primeiro país a prever o voto das mulheres[1] – a Nova Zelândia – somente o havia feito no ano anterior, ou seja, 1893, e que no Brasil o voto feminino só foi admitido com a Constituição Federal de 1934.
Pode-se ainda perceber na Lei certo cuidado na transparência da administração e nas preocupações éticas com os gestores da cidade, como o disposto no artigo 10, que determina que o Prefeito não poderia ser empregado público, nem ter qualquer ligação com construtoras ou empresas que tenham contrato com a municipalidade.
Artigo 10. Os Vereadores não poderão receber empregos ou comissões remuneradas da União, do Estado ou do município, nem com eles celebrar contractos; não poderão igualmente ser presidentes, diretores, representantes ou empregados retribuídos de companhias ou empresas que gozem favores do município, ou com eles tenham contractos.
Também há a preocupação em evitar as nomeações e exonerações de funcionários municipais por critérios de interesses políticos. Isso aparece no artigo 46, que estabelece que os cargos municipais de Tesoureiro, Secretário, Chefe de Secção, entre outros, seriam atribuídos somente por concurso público, e que depois de trabalhado mais de cinco anos, esses funcionários só poderiam ser demitidos por meio de processo administrativo, e depois de comprovada a incapacidade física, intelectual e moral para o exercício do cargo público.
Além disso, a Constituição Politica do Município conferia à Assembleia Municipal a atribuição de legislar sobre instrução publica municipal e sobre o pedido de subvenção pelo Estado devido para a mesma.
Artigo 14. Compete à Assemblea Municipal, além da atribuição geral de, nos limites da soberania do município, fazer leis, interpretá-las, suspende-las e revoga-las:
6º Legislar:
b) sobre a instrução pública municipal e sobre o pedido de subvenção pelo Estado devida para a mesma;
Tal artigo estava de acordo com a lei Estadual n. 16, de 13 de Novembro de 1891, que no seu artigo 56 dava às municipalidades o direito de:
[...] tomarem resolução sobre instrucção primaria profissional, creando escolas, museus e bibliothecas, adoptando os methodos e programmas que lhes parecerem mais convenientes, contractando ou nomeando livremente os professores e ficando os seus vencimentos e vantagens: [...].
No mesmo sentido, o artigo 45 da lei n. 88, de 8 de Setembro de 1892 – que reformou a instrução pública do Estado – rezava: “As camaras municipais poderão dispensar as escolas do Estado, uma vez que os municípios tenham um systema regular de ensino primário”.Pode-se perceber uma evidencia de ser desejo do governo entregar aos municípios os negócios relativos a sua instrução.
A Intendência Santista chegou a publicar uma lei municipal (lei municipal n. 2, de 17 de Dezembro de 1894) que dava à Prefeitura o direito de fiscalizar tudo o que dissesse respeito à instrução pública, estabelecendo em uma das suas secretarias um funcionário com a atribuição específica de fiscalização da educação na cidade.
Depois da leitura da Constituição Política de Santos, pode-se perceber que muito de seu conteúdo traz as representações republicanas dos seus autores e signatários, notabilizando-se pontos de grande avanço para o período, como o voto feminino, a preocupação com a probidade administrativa e a representação das minorias.



[1]Anos depois, em 1902, Vicente de Carvalho irá escrever os estatutos do Liceu Feminino Santista.

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