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Fim de um projeto: A anulação da Constituição Municipal

Contudo, tais “novidades republicanas” foram alvo de contestação por parte da elite política estadual e de seus aliados municipais, tendo sido pedida, em dezembro de 1894, a anulação da Constituição por Dr. José Emílio Ribeiro de Campos, major Francisco Cruz e outros, por meio de recurso à Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo.
Entre os motivos alegados, estava a inconstitucionalidade de suas disposições, que contrariariam tanto a Constituição Estadual como a Federal. Em resumo, apresentaram-se os seguintes motivos:
A declaração de que a cidade de Santos era soberana em seu território municipal; a criação de um “poder judiciário municipal” com o nome de Câmara de Recursos; a concessão de capacidade jurídica às mulheres; o estabelecimento de penas, delitos e regras processuais com relação aos crimes de improbidade administrativa; a determinação de casos de desapropriação de bens por utilidade púbica; a atribuição do poder executivo para um prefeito; incluir entre as fontes de renda do município o aforamento dos terrenos de marinha; dar à Assembleia Municipal o direito de fiscalizar os poderes de seus membros; estabelecer novos casos de perda do cargo de vereador; dar à Assembleia Municipal o poder de decidir sobre a incorporação de novos territórios; conferir à Assembleia Municipal o direito de organizar a força policial do município; determinar os subsídios de prefeito e vereadores já que estes só ganhariam por secção comparecida.(Cf. ANNAES da Câmara dos Deputados de 1895 p. 522 a 607)
No recurso interposto por Ribeiro de Campos constam dois argumentos principais: 1 Que a Constituição seria nula por alterar a organização do município estabelecido pela lei 16 de 13/11/1891; e 2- Que a Câmara de Recursos teria caráter judiciário, reservado somente ao Estado e à Federação.
A Assembleia Municipal, através de parecer do dia 05 de janeiro de 1895, contesta tais argumentos e defende que a Lei Política Municipal não feria as Constituições Federal e Estadual, pois não criava regras e direitos não contemplados antes nas referidas Cartas, mas apenas apresentá-los de forma diferentes. E ainda argumentava que:
O projeto da Constituição Política do Município de Santos foi formulado pelo ilustrado advogado Dr. Vicente Augusto de Carvalho, que seria incapaz de comprometter a Câmara Municipal, de abusar da confiança em si depositada redigindo o mesmo projeto contra a Constituição do Estado de São Paulo, em que colaborou elle como Deputado ao Congresso Estadual[1].
É o próprio Vicente de Carvalho, em parecer de 24 de novembro de 1894, que apresenta os contra-argumentos contra o recurso, e a nós, dá indícios de que não foram jurídicas as motivações do pedido de anulação:
A parte jurídica do referido recurso exprime apenas ignorância do assumpto. Os dous argumentos usados pelo recorrente contra a legitimidade da Constituição Municipal são ambos equivalentes na ausência, a ambos commum e completa em ambos, dos princípios de direito e preceitos de leis positivas que regulam a matéria.
Em seu texto, Vicente de Carvalho deixa ainda transparecer sua repulsa à intervenção do Estado nos negócios municipais quando diz:
Heresia abominável, que, contra o principio da autonomia municipal, pretende doutrinar uma intervenção intrusa do Congresso do Estado em matéria affecta à decisão do município.
Outro ponto de se notar no parecer do jurista e poeta é a insinuação, colocada de forma até irônica, de que o recurso poderia ser julgado contra os constituintes santistas por motivação política, ao mesmo tempo em que reforça a aversão à intervenção estatal na vida da cidade.
Ao chefe do Estado incumbe, não julgar, mas governar; não interpretar e applicar a lei unicamente, mas dirigir, no sentido das conveniências, do interesse publico, das ideias que acredita mais fecundas em benefícios, os elementos e as forças vivas que lhe estão confiadas. Nas questões políticas, raramente prevalece o fundamento jurídico, e se isto é condenável em doutrina, e dá lugar a catonimas theoricas de opposição, não é menos verdade que se pratica sempre, com tal regularidade que demonstra a sua necessidade.
A intervenção do governo na vida de um município pode não ser muito orthodoxa no ponto de vista da lei que restringe a casos especialíssimos essa intervenção; mas o governo pode ser forçado a arranhar a lei por exigências do partidarismo que lhe cumpre accomodar, por obediência a uma corrente forte de opinião, que é preciso satisfazer, ou por interpretação do cômodo e elástico saluspopulis suprema Lex est(grifo sublinhado do autor).Teria não direi justificativa, mas explicação, o provimento dado ao recurso, si a ausencia de fundamento jurídico que o distingue fosse compensada por alguma daquellas influencias que pesam na decisão das causas políticas(grifos nossos).
Um ano depois, o jornal A Tribuna do Povo de 10 de julho de 1896 trouxe a palavra dos partidários de Manoel Tourinho e Olímpio Lima, criticando a anulação completa da carta:

“Singular jurisprudência essa, senhores congressistas, que decreta o aniquilamento, a invalidade de uma lei simplesmente porque ela arrogou-a um atributo – o voto da mulher – de exclusiva competência do Congresso federal [...]. Tudo não passou de dar pasto à cobiça mal dissimulada, ao ódio de uma política indecorosa, cujo alvo era infamar e castigar adversários que tiveram a coragem de não submeter ao governo do Dr. Bernardino de Campos ou o desprendimento de não servi-lo.
... No fundo tudo não passou de espoliar de seu mandato de prefeito municipal um homem cuja influência política crescente incomodava o governo. A notícia da disparatada decisão do congresso foi aqui vitoriada ruidosamente por um grupo chefiado por certos sicofantas, para quem a política serve de repasto à sua voracidade de dinheiro. [...]”

Vê-se, portanto, quais eram as principais ideias trazidas pela Constituição Municipal e quais os argumentos utilizados pró e contra a manutenção de sua vigência, demonstrando diferentes projetos de política e de cidade e divergências de interesse entre os grupos que governavam o município e o Estado nesse período.



[1]De fato, Vicente de Carvalho, além de autor da Carta Santista, foi também deputado constituinte do Estado.

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