A cidade
de Santos, ao longo do século XIX, vinha enfrentando problemas sanitários, que
originavam e propagavam diferentes epidemias, como já foi mencionado
anteriormente, sendo deixada à própria sorte pelos governos estadual e federal.
Estes só voltaram seus olhos para a cidade com o desenvolvimento do comércio de
exportação, principalmente de café, no final deste século, quando passaram a
ingerir nos negócios da cidade, segundo seus interesses.
Conforme já visto, com a Proclamação da República, o governo
municipal passa das Câmaras para os Conselhos de Intendências. A Constituição
Federal e depois a Constituição Estadual de São Paulo estabelecem algumas
diretrizes, mas deixam a cargo dos municípios sua própria organização
administrativa.
A legislatura de 1892 a 1895 é a primeira da República eleita pelo
povo e nela estão sujeitos que participaram ativamente do movimento, bem como
dos conflitos republicanos, como a Revolta da Armada.
O primeiro
grupo de Intendentes eleitos em Santos em 1892 promulgou uma Constituição
Municipal dois anos depois. Entre eles, estavam apoiadores da Revolta da Armada
e apoiadores dos Movimentos Operários, como Manuel Maria Tourinho e Olympio
Lima. Nesse embate,pode-se perceber sujeitos que tentaram colocar em prática
suas concepções de república, além do confronto político e de ideias.
Essa Lei tinha
notadamente caráter de autonomia para o Município frente ao poder do Estado, e
também pontos considerados de vanguarda, como o voto feminino, a criação de um
órgão para julgar casos de improbidade administrativa e o destaque dado à
educação.
Uma das
questões é saber se havia mesmo uma concepção “avançada” de república, de
educação, ou “apenas” disputa por poder fixação de uma posição política. Os
debates nas sessões da Câmara Municipal podem fornecer indícios que auxiliem na
compreensão da educação no período.
Santos
teve importante participação no movimento para a abolição da escravidão e na
propaganda republicana, sendo palco de discussões e circulação de ideias no
final do século XIX.
A cidade
vinha enfrentando, por vários anos, problemas sanitários, que originavam e
propagavam diferentes epidemias, sendo deixada à própria sorte pelos governos
estadual e federal. Estes só voltaram seus olhos para a cidade com o
desenvolvimento do comércio de exportação, principalmente de café, no final do
século XIX, quando passaram a interferir nos negócios da cidade, segundo seus
interesses.
Diante
dessas forças que agiam na cidade, os grupos de políticos e intelectuais se
dividiram entre aqueles alinhados ao governo do Estado e aqueles que pretendiam
maior autonomia para Santos, cada um dos grupos procurando defender os ideais
republicanos segundo suas representações.
É nesse
contexto que , em 1894, é confeccionada pela primeira Câmara Santista de
vereadores eleitos no regime republicano e aprovada pela Intendência Municipal
da Cidade a Constituição Municipal de Santos, primeira e única de uma cidade do
Brasil. Uma Constituição Política, na qual está clara a intenção de
autogovernar-se sem interferências do governo federal ou estadual.
Vicente
de Carvalho foi o autor do texto e diversos vereadores fizeram suas
contribuições e/ou assinaram a Constituição. Entre eles, o então presidente do
Conselho de Intendência, Manuel Maria Tourinho, os jornalistas Antônio Manuel
Fernandes, Olímpio Lima e Alberto Veiga, e ainda José André do Sacramento
Macuco, José Caetano Munhoz, Alexandre José de Melo Júnior, João Braz de
Azevedo, Antônio Vieira de Figueiredo e Augusto Filgueira, todos atuantes na
sociedade de Santos e com participação ativa nos movimentos republicanos e pela
abolição em Santos.
Chama a
atenção o fato de ser usado o termo Constituição,reservado apenas às Cartas
Políticas dos Estados e da Federação. Além disso, a Constituição Santista continha
artigos de vanguarda para a época, como, por exemplo, a permissão do voto
feminino (só permitido no Brasil em 1934), o estabelecimento de remuneração
para os vereadores somente para as sessões em que comparecessem, a criação de
um órgão julgador dos atos de responsabilidade do prefeito, entre outros.
Essa
Constituição, já em seu primeiro artigo, proclamava Santos como uma cidade
autônoma e soberana em seu território, deixando clara a intenção de maior
liberdade para cuidar dos interesses municipais.
No
entanto, a Constituição Santista teve vida curta e, após protestos do grupo
alinhado ao governo estadual, foi anulada pela Assembleia dos Deputados do
Estado, sob a alegação de ser considerada contrária à Constituição de São Paulo
e à Lei que regia os municípios.
O Regime
Republicano foi inaugurado e muitos dos seus principais defensores assumiram
cargos nos governos federal e estadual, defendendo seus ideais. Podemos
perceber que autores da Constituição de Santos tinham em mente uma concepção de
república diferente. Tudo leva a crer que a representação de república dos
constituintes santistas valorizava a ideia de autonomia do município de Santos,
rebelando-se contra a ingerência de poderes externos na administração e
interesses da cidade.
Não se pretende fazer aqui uma análise
jurídica da Constituição Política do Município de Santos, mas, como ensinado
por Edward Thompson,procurar perceber a importância do estudo da lei para
entender as ideias, conflitos e tendências da sociedade, atentando-se à cultura
e aos costumes da qual surge:
[...] as regras e categorias
jurídicas penetram em todos os níveis da sociedade, efetuam definições
verticais e horizontais dos direitos e status dos homens e contribuem para a
autodefinição ou senso de identidade dos homens. Como tal, a lei não foi apenas
imposta de cima sobre os homens; tem sido um meio onde outros conflitos sociais
têm se travado (1987, p. 358).
A lei tem várias dimensões: não
é apenas um resultado da expressão ideológica das camadas dominantes, mas a
legislação pode revelar importantes informações sobre as disputas, imposições e
reivindicações dos grupos sociais. Dessa forma ela, é ao mesmo tempo arena e
“troféu” das lutas sócio-políticas. Ao estudar uma lei, é importante tentar
conhecê-la não apenas como uma parte do ordenamento jurídico, mas principalmente
como meio de manifestação de uma prática social.
Nesse sentido, a nova Constituição traz
muitos dados relevantes para perceber os avanços e diferenças com relação à
legislação municipal até então. Essas divergências de opinião ou posição
política vão resultar nos conflitos que provocaram sua anulação. Isso mostra
que havia concepções de república diferentes entre os grupos políticos de
então.
Logo em seu primeiro artigo, a
Constituição ressalta sua intenção de autonomia:
Art. 1º O Município de
Santos é autônomo na esphera de sua
economia própria e nos assuntos de seu peculiar interesse. A sua soberania se estende por todo seu
território[...]. (grifo nosso)
Tal afirmação deixa bem clara a intenção de
autonomia da cidade frente à ingerência dos poderes estadual e federal, ainda
que não rompa diretamente com esses poderes, pois se insere como parte do
Estado de São Paulo e submissa à Constituição Federal.
A Carta traz o termo soberania -
que geralmente é utilizado somente para Estados Nacionais - para se referir ao
poder de supremacia que o Estado tem sobre os indivíduos e os grupos que formam
sua população, e de independência com relação aos demais Estados.
A Carta Municipal contêm 53
artigos e divide-se em duas partes, cada uma com três seções. A Primeira trata
da Organização do Município, abordando temas como Assembleia Municipal e suas
atribuições, as formas de feitura das leis e resoluções, depois dos cargos de
Prefeito e Subprefeito, sua eleição e atribuições, e termina dispondo sobre a
Câmara de Recursos. A Segunda Parte refere-se às Disposições Gerais, da Revisão
Constitucional e das Disposições Transitórias.
Os poderes legislativo e
executivo, até então a cargo de um único órgão (a Intendência), são separados.
A Constituição apresenta o Poder Legislativo, exercido pela Câmara (chamada de
Assembleia Municipal), e o poder Executivo, exercido por um Prefeito:
Art. 14. Compete à
Assembleia Municipal, além da atribuição geral de, nos limites da soberania do
município, fazer leis, interpretá-las, suspende-las e revoga-las
Art. 22. O poder
executivo é exercido pelo Prefeito municipal.
Foi criada ainda a Câmara de
Recursos (artigos 38 a 40), órgão composto por três membros eleitos em conjunto
com o prefeito e responsável por julgar os atos de improbidade administrativa
do Prefeito, Vice-Prefeito e membros da Assembleia Municipal; tratar dos
recursos interpostos relativos aos crimes cometidos no exercício dos cargos
públicos e à má gestão municipal; julgar problemas com relação à inclusão no
alistamento eleitoral; e reclamações sobre eleição para qualquer cargo
municipal.
Nessa organização, percebe-se a
tendência mais democrática que possui essa representação de administração
republicana do município, pois chama o órgão legislativo de Assembleia
Municipal, com conotação democrática, além de separar o poder executivo do
legislativo.
Outro ponto de favorecimento da
participação democrática é o artigo 4º, parágrafo único, que estabelece a
proporção de um vereador para cada dois mil habitantes indicando que os autores
da Lei tinham em mente a ideia de república com mais representatividade.
Vejamos:
Desde que se proceda ao
recenseamento da população do município, a Assembleia compor-se-ha de tantos
Vereadores quantos dous mil habitantes houver; nunca podendo, porém exceder em
numero a dezoito.
A ideia de participação popular
aparece também na disposição de eleição direta para Prefeito. E ainda na
representação de todos os estratos da população, especialmente das minorias,
como o disposto no artigo 41:
Na eleição para os cargos
municipais observar-se-hao, além das condições de elegibilidade, já contidas na
presente Constituição, o princípio da representação das minorias, devendo a lei
eleitoral adotar para esse fim o meio mais eficaz.
A questão da cidadania e direito
a voto foi contemplada na Constituição Municipal também ao estabelecer que
todos os homens maiores de 21 anos seriam eleitores, assim como as mulheres:
Artigo 42. Serão
eleitores municipais os cidadãos maiores de vinte e um anos, e as mulheres sui
juris e exercendo profissão honesta; sabendo ler e escrever e residindo no
município há mais de um ano.
A Constituição Federal se omitiu
com relação aos direitos políticos da mulher, possibilitando aos estados tratar
da matéria. A Constituição Santista quis garantir tal direito à mulher, e o fez
pela primeira vez no país, ainda que tenha sido anulada logo em seguida.
Note-se que tal disposição foi
muito avançada para o período, já que o primeiro país a prever o voto das
mulheres[1] – a Nova Zelândia – somente
o havia feito no ano anterior, ou seja, 1893, e que no Brasil o voto feminino
só foi admitido com a Constituição Federal de 1934.
Pode-se ainda perceber na Lei certo
cuidado na transparência da administração e nas preocupações éticas com os
gestores da cidade, como o disposto no artigo 10, que determina que o Prefeito
não poderia ser empregado público, nem ter qualquer ligação com construtoras ou
empresas que tenham contrato com a municipalidade.
Artigo 10. Os
Vereadores não poderão receber empregos ou comissões remuneradas da União, do
Estado ou do município, nem com eles celebrar contractos; não poderão
igualmente ser presidentes, diretores, representantes ou empregados retribuídos
de companhias ou empresas que gozem favores do município, ou com eles tenham
contractos.
Também há a preocupação em
evitar as nomeações e exonerações de funcionários municipais por critérios de
interesses políticos. Isso aparece no artigo 46, que estabelece que os cargos
municipais de Tesoureiro, Secretário, Chefe de Secção, entre outros, seriam
atribuídos somente por concurso público, e que depois de trabalhado mais de cinco
anos, esses funcionários só poderiam ser demitidos por meio de processo
administrativo, e depois de comprovada a incapacidade física, intelectual e
moral para o exercício do cargo público.
Além disso, a Constituição
Politica do Município conferia à Assembleia Municipal a atribuição de legislar
sobre instrução publica municipal e sobre o pedido de subvenção pelo Estado
devido para a mesma.
Artigo 14. Compete
à Assemblea Municipal, além da atribuição geral de, nos limites da soberania do
município, fazer leis, interpretá-las, suspende-las e revoga-las:
6º Legislar:
b) sobre a
instrução pública municipal e sobre o pedido de subvenção pelo Estado devida
para a mesma;
Tal artigo
estava de acordo com a lei Estadual n. 16, de 13 de Novembro de 1891, que no
seu artigo 56 dava às municipalidades o direito de:
[...] tomarem resolução
sobre instrucção primaria profissional, creando escolas, museus e bibliothecas,
adoptando os methodos e programmas que lhes parecerem mais convenientes,
contractando ou nomeando livremente os professores e ficando os seus
vencimentos e vantagens: [...].
No mesmo
sentido, o artigo 45 da lei n. 88, de 8 de Setembro de 1892 – que reformou a
instrução pública do Estado – rezava: “As camaras municipais poderão dispensar
as escolas do Estado, uma vez que os municípios tenham um systema regular de
ensino primário”.Pode-se perceber uma evidencia de ser desejo do governo
entregar aos municípios os negócios relativos a sua instrução.
A Intendência
Santista chegou a publicar uma lei municipal (lei municipal n. 2, de 17 de
Dezembro de 1894) que dava à Prefeitura o direito de fiscalizar tudo o que
dissesse respeito à instrução pública, estabelecendo em uma das suas secretarias
um funcionário com a atribuição específica de fiscalização da educação na
cidade.
Depois da leitura da
Constituição Política de Santos, pode-se perceber que muito de seu conteúdo
traz as representações republicanas dos seus autores e signatários, notabilizando-se
pontos de grande avanço para o período, como o voto feminino, a preocupação com
a probidade administrativa e a representação das minorias.
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