Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas –
sinais, indícios – que permitem decifrá-la.
CARLO GIZBURG
Em seu célebre texto sobre cultura escolar (JULIA, 2001), Dominique Julia
se propõe a refletir sobre esse conceito a partir de um determinado recorte
temporal, séculos XVI e XIX, justificando:
“Esses três elementos, espaço escolar específico, cursos
graduados em níveis e corpo profissional específico, são essenciais à
constituição de uma cultura escolar e justificam, portanto, a restrição
cronológica que me impus” (JULIA, p. 15)
Tais elementos, conforme explicitados pelo próprio autor, são os
constitutivos de uma cultura própria da instituição escolar, que surgiu,
portanto, historicamente.
Durante o século XVI há a sedimentação da ideia que o ensino
deveria se dar em um espaço escolar à parte, com um edifício, um mobiliário e
um material específicos. Esse ideal se desenvolve a partir do modelo das
Escolas Cristãs de Jean-Baptiste de La Salle[1],
que por sua vez havia se inspirado nas experiências dasescolas paroquiais e colégios
de seu tempo.
Durante os períodos seguintes, desenvolve-se o modelo ideal
da separação do curso em classes separadas.
Há a ideias de uma educação elementar, das bases do
conhecimento, especialmente a catequese, ler, escrever e contar, e uma educação
“superior”, voltada para a formação das elites. (JULIA, 2001 p. 26)
E a partir do século XVI que nascem os corpos profissionais que
se especializam na educação, quando as congregações religiosas definirão
pré-requisitos ou qualidades essenciais[2]àqueles
que se dedicarão ao ofício do ensino. Esse início da profissionalização se dá
com a Reforma Protestante e Concílio de Trento, quando os religiosos percebem a
importância e a necessidade de conhecer os elementos da fé.
Portanto a escola tem sua criação e desenvolvimento acompanhando
as mudanças históricas e de pensamento.A forma mediante a qual a escola
transpõe didaticamente os saberes é diretamente interligada ao modo pelo
qual,historicamente, ela se apropria deles.Poderíamos, inclusive, dizer que os
saberes da escolarização são desenhados à imagem esemelhança dessa escola: em
seu compasso, em seu traçado. (BOTO, 2007, p. 19)
Durante a maior parte da Idade Média tivemos uma sociedade
pouco letrada e o conhecimento restrito aso meios religiosos, responsáveis pela
guarda e transmissão da cultura letrada. As escolas paroquiais destinavam-se a
introduzir parte da população nesses conhecimentos, que incluíam os religiosos.
O sistema de formação era configurado na educação a partir de
algumas instituições com características próprias: a cavalaria, baseadas em
ritos de passagem e iniciação, de um conhecimento não letrado;as escolas
paroquiais, onde era ensinado a ler e a escrever; as Escolas dos Mosteiros, que
se destinavam a ensinar as sete artes liberias (trivium e quadrivium); as
Escolas das Corporações de Ofícios, destinadas ao ensino profissional o qual
aprendizes em contato e experiência com um mestre aprendiam os segredos de um
ofício;; e especialmente os Colégios, que dividirão o tempo e terão um espaço
específico destinado ao ensino.
Esse último está na gênese da escola moderna, por ser uma
escola seriada, com hierarquia de conhecimentos, o que não havia na essência
nos sistemas anteriores. Esses colégios formatam o que é o modelo moderno da
escola.
A criação da prensa e a divulgação do conhecimento pelo maio
impresso facilitou a circulação de livros e de ideias. As escolas passam a ter
um papel mais importante, de controle do conhecimento, que por conta dos livros
não é mais restrito.
Com o Renascimento, e o Humanismo, sua expressão letrada, há
uma transformação cultural da sociedade, e na própria concepção de Homem, que
passa a ser entendido como em formação, e não mais dado pronto e acabado. Como
podemos perceber, por exemplo, em Montaigne
Viso aqui apenas revelar a mim mesmo, que porventura amanhã
serei outro, se uma nova aprendizagem mudar-me.(MONTAIGNE, 2005, p. 39)
O ser humano passa a ser visto como capaz de fazer-se a si
próprio, ou seja, não nascem prontos mas são educados. Nessa época há uma preocupação
com a criança, em parte por conta da menos mortalidade infantil, que
proporcionará maior atenção à sua formação.
Assim como na agricultura as regras que vêm antes do plantio
são fixa e fáceis, e também o próprio plantio, mas depois que o que está plantado
começa a tomar vida há uma grande variedade de regras e dificuldades para
cria-lo, da mesma forma com os homens, há pouca engenhosidade no plantá-los,
mas depois que nascem sobrecarregamo-nos de um cuidado diferente, ceio de
trabalho e de temor, para formá-los e cria-los. (MONTAIGNE, 2005, p. 40/41)
Nesse período a educação está principalmente destinada às
elites, por meio de preceptores que instruem individualmente ascrianças em
conhecimentos humanísticos e científicosmas especialmente morais, tendo em
vista que considera-se de importância a formação do Homem.
(...)gostaria que tivesse o cuidado de escolher um preceptor
que antes tivesse a cabeça bem-feita do que cheia e que se lhe exigissem ambas
as coisas, porém mais os costumes e o entendimento do que a
ciência(...)(MONTAIGNE, 2005, p. 44)
A Civilidade não nasce com o Homem, mas pode ser adquirida,
perdida e readquirida. Essa ideia surge da noção da burguesia que escolhe seu
próprio destino. Diante disso, a infância passa a ser um problema a ser resolvido,
já que é de grande importância aquilo que se ensina às crianças.
Essa ideia pode ser percebida nas obras de Erasmo de
Rotterdam destinadas à educação: De pueris e A
civilidade Pueril. Nesses textos Erasmo escreve aos pais, preocupado com a
formação do jovem, que sem o preceptor e a formação correta poderia se
descaminhar para os vícios de sua própria vontade.
Até o agricultor menos avisado não deixa parte nenhuma de
seu campo ficar de todo em abandono. Na parte menos própria ao plantio de
trigo ou nela cultiva outras plantas ou forma pastagens ou ocupa de legumes. E
nós? Vamos tolerar que a parte mais promissora da vida fique deserta de
floração erudita? Terra arada, de recente, se não for povoada de qualquer
plantação, por si mesma produz cizânia. O mesmo sucede com a mente infantil.
Não sendo, logo de principio, de ensinamentos frutíferos, cobre-se de vícios.
(ERASMO, 2011).
Muitos autores consideram Erasmo o primeiro pensador a
compilar um método de conduta considerado relevante para o período.
A arte de instruir crianças consta de diversas etapas. A
primeira e a principal consiste em fazer com que o espírito ainda tenro receba
as sementes da piedade; a segunda, que tome amor pelas belas artes e as
aprenda bem; a terceira que seja iniciada nos deveres da vida; a quarta, que se
habitue, desde cedo, com as regras da civilidade. (ERASMO, 2011).
O luteranismo vai incentivar a leitura da Bíblia e desde o
início vai incentivar a alfabetização de todos, com a criação de escolas. Nessa
concepção de educação a escola tem sua finalidade religiosa, mas também sua
finalidade civil, já que deverá formar meninos para governarem as cidades e as
meninas para administrar a casa e a família.
Mesmo que (como já disse) não existisse alma e não se
precisasse das escolas e línguas por causa da Escritura e de Deus, somente isso
já seria motivo suficiente para instituir as melhores escolas tantopara meninos
como para meninas em toda parte, visto que também o mundo precisa de homens e
mulheres excelentes e aptos para manter seu estado secular exteriormente, para
que então os homens governem o povo e o
pais, e as mulheres possam governar bem a casa e educar bem os filhos e a
criadagem (LUTERO, 1995, p. 318)
Lutero vai se preocupar com uma educação cristã, mas de crianças
para prepará-las para uma sociedade cristã. Seu argumento é religioso, mas sua
lógica era política.
O Estado devia manter o controle da educação,que é muito importante
para ficar nas mãos de uma religião ou mesmo dos pais.
Diana Vidal analisando os conceitos de cultura escolar, forma escolar e
gramática da escola aponta que Guy Vicent, ao interrogar-se sobre a os três
elementos constitutivos da instituição escolar (espaço, tempo e relação
pedagógica), “percebia a gênese desse modelo na escola lassalista da França no
fim do século XVII”(VIDAL 2005 p. 37)
“Guy Vincent considerava que a forma escolar criada por La
Salle havia sido mantida em sua essência (permanecendo como tal até os dias de
hoje). Para Vincent, a alteração fundamental foi operada em grande parte pela
passagem de uma cultura fundada na oralidade para uma cultura escritural,
baseada na difusão da palavra escrita (crescimento da alfabetização), mas
principalmente na organização do pensamento e da relação do homem com o mundo
pela lógica escritural” (VIDAL 2005 p. 38)
Essa “cultura escritural” se deu por meio de um processo de
formalização do ensino, que se desenvolveu no tempo e passou a considerar
necessário um tipo específico de formação a partir de certos modelos que
influenciam a instituição escolar até nossos dias.
La Salle desenvolve um modelo de aprendizagem que se realiza
especificamente na escola, um local específico, separado do restante da
sociedade, e não mais em família. A aprendizagem passa a ter um sistema, um
modo de se dar, que é a base do padrão que servirá os séculos a seguir.
BIBLIOGRAFIA
BOTO, Carlota. Civilizar a
infância na Renascença: estratégia de distinção de classe.Cadernos da Pedagogiaano I Volume 01 Janeiro/Julho de 2007.
COMENIUS. Didática Magna: ou arte de ensinar tudo
a todos. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.203-229.
ERASMO. De pueris e A
civilidade Pueril [excertos]. In: Feracine, Luiz (compilador) Erasmo de Rotterdam: o mais eminente
filósofo da Renascença. São Paulo: Lafonte, 2011.
JULIA, Dominique. A
cultura escolar como objeto histórico. In: Revista
Brasileira de História da Educação. Sociedade Brasileira de História de
Educação/ Autores Associados: Campinas. Janeiro/junho, 2001, n. 1, p. 9-43.
LA
SALLE, Juan Bautista de. Guia de lasescuelas
dividida em três partes. Madrid: Editorial Biblioteca Neuva, 2012.
LUTERO, Martinho. Aos
conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas.
In: MARTINHO Lutero: obra
selecionada. São Leopoldo: Comissão Interluterana de Literatura, 1995.
MONTAIGNE, Michel. Da educação das crianças. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p.31-53.
VIDAL, Diana Gonçalves. Culturas escolares: estudo sobre
práticas de leitura e escrita na escola pública primária (Brasil e França,
final do século XIX). Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
[1]La Salle foi o criador de um Instituto de Leigos que
se excluem, por vocação, da cultura das elites para se consagrarem às escolas
de caridade destinadas aos mais pobres.
[2]A Companhia de Jesus previa um exame geral que julgava
a inteligência, perspicácia, devoção e saúde. Oratorianos exigiam qualidades
físicas e inclinação para as ciências. Na Universidade de Paris procurava-se
identificar os melhores alunos e ensinar-lhes progressivamente. Exigia-se
caráter, piedade e costumes. (JULIA 2001, p. 27)
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