Quando iniciei no programa de pós-graduação da FE-USP tinha
em mente um projeto de pesquisa que tratasse das
transformações políticas, culturais
e socioeconômicas ocorridas na cidade de Santos no início da República,
analisando como se deu a escolarização na cidade, mas pela ótica dos
intelectuais. No meu entender faltavam trabalhos que estudassem a forma como a
cidade de Santos transformou-se do ponto de vista administrativo organizando-se
como Intendências, em substituição ao antigo modelo de Câmaras Municipais do
período Imperial.
No meu entender o mais
interessante, era o fato de o primeiro grupo de Intendentes eleitos em Santos,
em 1892, ter promulgado uma Constituição Municipal (1894) e praticamente não
haver debatehistoriográfico sobre o tema.Essa Lei tinha notadamente caráter de
autonomia para o Município frente ao poder do Estado, e também pontos
considerados de vanguarda, como o voto feminino, a criação de um órgão para
julgar casos de improbidade administrativa e o destaque dado à educação.
Uma das questõesera saber se
havia mesmo uma concepção “avançada” de república, de educação, ou “apenas”
disputa por poder fixação de uma posição política. Além dos intelectuais, na
defesa de seus ideais educacionais para a cidade revelam-se disputas políticas
e sociais entre os grupos, como os imigrantes, operários, comerciários e a
própria elite comercial, que se “materializaram” na criação escolas: públicas,
religiosas, ligadas a sociedades de auxílio mútuo, centros de imigrantes, entre
outros.
Ao rever o projeto, após ter
cursado as disciplinas e participado da discussão no NIEPHE (Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação), decidiu-se
por delimitar melhor o objeto da pesquisa, passando a operar com a chamada
História dos intelectuais. Dessa forma serão analisados os debates sobre
educação dos primeiros políticos eleitos em Santos após a instauração da
República, procurando perceber
A finalidade dessa análise é procurar
conhecer a relação existente entre as práticas e as representações das ideias
políticas e educacionais dos intelectuais santistas no período estudado, e a
forma de intervenção social no período.
Ao transitar por diferentes tempos e
espaços sócias, inscrevendo-se em determinadas redes de relações, esses
intelectuais do século XIX e XX estavam imbuídos de diversas competências a
partir das quais eles procuravam intervir no corpo social e, nesse papel, eles
articulavam diferentes saberes e culturas. . (FARIA FILHO, et al. 2009, p. 12).
Grupos de intelectuais apoiados pelos poderes do Estado e do município
se confrontavam por interesses políticos e
econômicos. O Município buscava sua autonomia, enquanto o Estado utilizava-se
de seus poderes constitucionais e prerrogativas legais para atuar de forma
centralizadora
Essas tensões podem se revelar na
criação de escolas. Por exemplo, ocomerciante santista Barnabé Francisco Vaz de
Carvalhal, deixou em seu testamento, em 1892, uma dotação para a criação de uma
escola pela municipalidade. Contudo tal instituição só foi efetivamente
colocada a funcionar em 1902, dez anos depois do legado e dois anos depois da
criação do primeiro Grupo Escolar de Santos, o Grupo Escolar Cesário Bastos de
1900, por iniciativa do Estado de São Paulo . Além disso, apesar da crescente
demanda e das diversas iniciativas particulares de criação de escolas o
terceiro grupo escolar só foi criado em 1915.
Nesse sentido foi esclarecedor o texto de Rosa Fátima de
Souza (1998) que apresenta como no início da república a escola passa da esfera
privada para a pública, na medida em que deixa de ser entendida como uma
extensão da casa do professor, para prédios específicos para o fim da
instrução:
“A casa-escola deveria refletir o papel social da
instrução primária e os valores atribuídos à educação. Ela haveria de ser,
antes de tudo, uma força moral e educativa(...) O edifício-escola deveria
exercer, portanto, uma força educativa no meio social. (1998, p. 122-123)
As leituras e discussões na disciplina “Cultura Escolar e Organização dos Tempos de Ensinar e Aprender:
Tradições e Imperativos de Mudanças no Ensino Brasileiro” me ajudaram a
pensar melhor certos aspectos de minha pesquisa. Os textos têm contribuído no entendimento de como se dá a ideia de uma educação
escolar, e da necessidade da criação de escolas. Essa discussão de um tempo e
de um espaço próprios para a escola, pode se relacionar com a questão da
construção de salas e prédios específicos para a educação em Santos,
especialmente a Escola Barnabé e a Academia de Comércio de Santos, pontos de
inflexão do meu trabalho.
Símbolos, ornamentos, monumentalidade: todos esses
elementos da retórica arquitetônica dos primeiros edifícios dos grupos
escolares exerceram uma função educativa dentro e fora da escola. Além disso,
foram instrumentos importantes para a construção da identidade da escola
primária. Devem, portanto, ser vistos como expressões do movimento da escola na
construção das cidades e da cultura daquela época (SOUZA 1998, p. 138)
A questão dos prédios escolares,
presente nos debates sobre a criação da Escola Barnabé[1]
e na criação da Academia de Comércio de Santos[2]
mostra-se rica para entender a educação do período:
O edifício-escola, como se sabe, serviu de estrutura
material para colocar o escudo pátrio, a bandeira nacional, as imagens e
pensamentos de homens ilustres, os símbolos da religião, algumas máximas morais
e higiênicas, o campanário e o relógio... Isso expressa toda uma instrumentação
da escola a serviço de ideais nacionais, religiosos e sociomorais. (FRAGO, ESCOLANO,
1998, p.40)
Portanto, além dos debates
políticos, cada grupo envolvido com a educação na cidade pode ter uma concepção
do que é escola e qual sua importância para a cidade.
Na análise dos os documentos utilizados na pesquisa pode-se
perceber um intenso debate nos primeiros anos da república, mas em determinado
momento, uma verdadeira explosão na criação de escolas, muitas de iniciativa pública,
sinalizando a importância social da escola e da educação.
Entre os anos de 1902 e 1907, o número de
cadeiras de instrução primária administradas pela municipalidade aumentou de
cinco para vinte e cinco. Em 1900 foi criado o Grupo Escolar Cesário Bastos, o
primeiro da cidade, e, em 1902, o Grupo Escolar Barnabé. Surgiram ainda
diversas instituições de diferentes grupos civis, umas mantidas por associações
de auxílio mútuo, como a Sociedade União Operária e a Sociedade Humanitária dos
Empregados do Comércio, outras por Centros de Nacionalidade como o Centros
Espanhol, outras pensadas para serem escolas de formação profissional, como a
Academia de Comércio de Santos e o Instituto Escolástica Rosa, além das escolas
confessionais[3].
A insuficiência da instrução dada à população já vinha sendo
denunciada. Em artigo escrito no jornal Diário de Santos, datado de 20 de junho
de 1894, o professor Carlos Escobar[4], cobra
a aplicação de recursos para a instrução primária da população. Aose referir à
intenção da Câmara de criar uma Academia de Comércio, critica o emprego de
valores para a abertura de uma escola superior, quando, segundo ele, a
instrução primária ainda era precária.
Além das mudanças mais visualmente perceptíveis na cidade de
Santos, ocorreram mudanças na cultura, na qual a oralidade, até então
predominante, passou a ser gradualmente invadida pela escrita. Cruz (2000,
p.66) aponta que
Nas ultimas décadas do século passado [XIX], misturada
às necessidades colocadas pelo desenvolvimento das escritas e controles
mercantis, obedecendo aos ditames da “vulgarização” impostos pela propaganda,
transportada na velocidade dos novos serviços de correios e telégrafos e
articulada às novas linguagens visuais da modernidade, a escrita desce do
pedestal e começa a invadir a vida cotidiana da cidade.
Nesse sentido foi fundamental a leitura de Dominique Julia (2001), que
se propõe a refletir sobre o conceito de cultura escolar a partir de um
determinado recorte temporal:
“Esses três elementos, espaço escolar específico, cursos
graduados em níveis e corpo profissional específico, são essenciais à
constituição de uma cultura escolar e justificam, portanto, a restrição
cronológica que me impus” (JULIA, 2001, p. 15)
Tais elementos, conforme explicitados pelo próprio autor, são os
constitutivos de uma cultura própria da instituição
escolar, que surgiu, portanto, historicamente.
Diana Vidal analisando os conceitos de cultura escolar, forma escolar e
gramática da escola aponta que Guy Vicent, ao interrogar-se sobre a os três
elementos constitutivos da instituição escolar (espaço, tempo e relação
pedagógica), percebia a gênese desse modelo em um determinado período
histórico:
“Guy Vincent considerava que a forma escolar criada por La
Salle havia sido mantida em sua essência (permanecendo como tal até os dias de
hoje). Para Vincent, a alteração fundamental foi operada em grande parte pela
passagem de uma cultura fundada na oralidade para uma cultura escritural,
baseada na difusão da palavra escrita (crescimento da alfabetização), mas
principalmente na organização do pensamento e da relação do homem com o mundo
pela lógica escritural” (VIDAL, 2005, p. 38)
Essa “cultura escritural” se deu por meio de um processo de
formalização do ensino, que se desenvolveu no tempo e passou a considerar
necessário um tipo específico de formação a partir de certos modelos que
influenciam a instituição escolar até nossos dias.
[1] Uma das
principais discussões era se o legado deixado pelo comerciante seria suficiente
para construção do edifício da escola.
[2] Um dos
argumentos para a criação da Academia foi a doação e prédio próprio pela
Sociedade Auxiliadora da Instrução.
[3]Relatório
da Câmara Municipal de Santos, SP, 1908, p. 48.
[4] Foi
professor e Diretor dos Grupos Escolares Cesário Bastos e Barnabé, além de
Inspetor Escolar.
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