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NOVOS TEMPOS DEMANDAM NOVAS PRÁTICAS: A ACADEMIA DE COMÉRCIO DE SANTOS

NOVOS TEMPOS DEMANDAM NOVAS PRÁTICAS:
A ACADEMIA DE COMÉRCIO DE SANTOS

Marina Tucunduva Bittencourt Porto Vieira
Faculdade de Educação da USP
Anderson Manoel Caleffi
Universidade Católica de Santos


O presente trabalho aborda a forma como as grandes transformações culturais e sócio-econômicas ocorridas em Santos, na passagem do século XIX para o XX, criaram novas demandas nas práticas comerciais e como estas podem ter propiciado a fundação da Academia de Comércio de Santos.
O objetivo deste trabalho é entender a forma como a modernização ocorrida na cidade levou a mudanças nas representações de como deveriam ser aprendidas formas de trabalho na escrituração comercial. Baseia-se em pesquisa documental, com a utilização de fontes primárias, como as atas da Câmara de Santos referentes ao período, a lei que criou a escola e os regulamentos da mesma, além de ofícios e requerimentos desta junto à administração municipal. Este material foi cotejado com jornais da época e material bibliográfico.
Inicialmente descreveremos algumas das modificações ocorridas na cidade. Thompson (2008, p.88) descreve os costumes como [...] crenças não escritas, normas sociológicas e usos asseverados na prática, mas jamais registrados por qualquer regulamento. A cidade, portuária, possuía uma tradição comercial, mas prioritariamente oral. Até a inauguração da São Paulo Railway, em 1867, o café era trazido das fazendas do interior da Província para Jundiaí e daquela cidade saia transportado por tropas de muares até Santos. Chegando ao litoral, carroções transportavam a mercadoria até os armazéns onde era preparado e onde aguardava o embarque.
Os navios costumavam ficar ancorados a mais de 100 metros da margem do porto e eram acessados por meio de longas pontes de madeira. Os sacos com o produto eram transportados nas costas por trabalhadores e escravos dos armazéns até os navios fundeados no outro extremo da ponte. O conjunto de armazém e ponte de madeira, conhecido na cidade como trapiches, era explorado por comerciantes locais.
Com a inauguração do transporte via ferrovia, de Jundiaí a Santos, houve um avanço no transporte de mercadorias para o porto de Santos.  Com a construção da Companhia Paulista de Estradas de Ferro que ligava Jundiaí a Campinas, o processo acelerou-se, ainda mais, principalmente se considerarmos que houve a ligação do terminal de Campinas com outras regiões do interior de São Paulo produtoras de café. O café começou a chegar em maior quantidade e em maior velocidade ao porto de Santos.
Com o crescimento de cidades no interior paulista e com o aumento do volume de mercadorias, especialmente do café, transportadas para Santos para serem exportadas, fez-se necessária nova linha e, em 1895, foi iniciada a construção de outra através da Serra do Mar, que seguia paralela a linha antiga. Contudo, apesar da chegada de grande volume de café ao porto, facilitadas pela construção das ferrovias, a cidade não possuía infra-estrutura adequada para arcar com o volume dos produtos chegados do interior. Os armazéns eram em número insuficiente, assim como as pontes.
  O final do século XIX trouxe para Santos dois grandes desafios: a erradicação das epidemias que por mais de sessenta anos assolavam a cidade, e a preparação da infra-estrutura urbana e humana para o aumento do comércio e a crescente exportação do café, que aumentava cada vez mais.
A Associação Comercial era a entidade que representava os interesses da elite comercial da cidade de Santos. Criada em 22 de dezembro de 1870, por um grupo de comerciantes locais, pressionou o Governo do Estado que criou comissões responsáveis pelo combate às epidemias e pelo saneamento.
A modificação nos costumes e métodos que nasceu com o surgimento dos navios a vapor, com as ferrovias, e com as novas idéias trazidas pelos imigrantes, mostrou ser necessária a construção de um cais e a modernização das operações portuárias. Foram feitas diferentes tentativas, todas infrutíferas, para a construção do cais do porto, como a concessão ao conde Estrela e a Francisco de Andrade Pertence em 1870, e ao Governo da Província de São Paulo em 1882.
Tornou-se necessária a urgente modernização do porto, pois os trapiches e pontes de madeira já não davam conta da intensa movimentação de mercadorias e pessoas. A Associação Comercial, que defendia os interesses da elite comercial da cidade, inclusive dos proprietários de trapiches, pretendia apenas reformar o que já existia, e por isso foram recusados diversos projetos de construção do cais.
Somente em 1888 as obras tiveram início, quando o Governo Imperial fez a concessão da construção do cais do porto santista a um grupo de empresários que havia constituído a sociedade Gaffreé, Guinle & Cia, posteriormente transformada na Sociedade Anônima Companhia Docas de Santos. Inicialmente receberam a concessão para explorar o porto por 39 anos, mediante a construção de 866 metros de cais, armazéns e linha de ferro. Em 1890 a empresa compromete-se a construir mais 966 metros e a concessão é ampliada para 90 anos. (GITAHY, 1992 p. 29).
Por conta disso, a Companhia Docas de Santos, concessionária para a construção do cais e a administração do porto, iniciou as obras que visavam substituir as pontes e trapiches, até então responsáveis pela movimentação portuária, por um cais onde os navios pudessem atracar. A companhia também ficou encarregada de providenciar a infra-estrutura necessária para atender a crescente demanda do movimento portuário, voltada para a exportação do café e para a entrada de produtos estrangeiros, como o maquinário destinado às fábricas que surgiam na cidade de São Paulo.
Os grupos locais acabaram ficando fora do controle do comércio cafeeiro, principal produto de exportação do Porto de Santos.  Mais tarde com a construção da amurada do cais, até mesmo o acesso de terceiros passa a ser controlado pela Cia. Docas.
Muitos conflitos surgiram inicialmente entre a Cia. Docas e os comerciantes santistas, principalmente por conta da desapropriação e demolição dos trapiches. A concessionária tinha o apoio das duas esferas do governo: a federal e a estadual. Diante dos confrontos recorreu ao Governo Federal, alegando que a concessão lhe daria o direito ao monopólio portuário e conseguiu a demolição dos trapiches. O governo Estadual concedeu-lhe, posteriormente, também o monopólio da Alfândega santista.
As desavenças só começaram a chegar ao fim com o início das greves operárias, a partir de 1891, quando a Associação Comercial e a Docas uniram suas forças contra a paralisação dos trabalhadores do porto. A última aproveitou-se dos ex-escravos do Quilombo do Jabaquara, apadrinhados pela elite comercial da cidade, e os utilizou para o trabalho nas pedreiras de onde eram tiradas as pedras para as obras do cais do porto, “furando” a greve.
A construção e o monopólio do Porto pela Cia. Docas geram uma reorganização do trabalho e do próprio espaço da cidade empreendida sob o signo da disciplina e da eficiência capitalistas. (GITAHY, 1992 P. 33) Devido ao aumento do trabalho e o monopólio dos serviços portuários a Cia. Docas passa a controlar o corpo de carregadores e depois de outros trabalhadores portuários, passando a exigir assim, a qualificação que deseja.
Antes da construção do cais e da transformação do trabalho portuário, moldando-se aos ideais capitalistas, o trabalho ocorria segundo costumes gradualmente instituídos. O café passou a ser prioritariamente exportado a partir da cidade apenas no final do século XIX, quando a produção pela região do Vale do Paraíba, exportada pelo porto do Rio de Janeiro, já havia decaído, dando lugar à expansão da lavoura cafeeira para outras regiões da Província. Ainda que por Santos se exportasse a maior parte do café produzido no país, as condições de trabalho no porto não acompanharam esse desenvolvimento, se dando da mesma forma que há muitos anos, ou melhor, da mesma forma como se dava no período colonial.
Em 1905, quando frente a mais um greve operária, A Cia. Docas

 esclarece atritos da situação criada pela convivência entre diferentes patrões, diferentes regras, diferentes salários no espaço do Porto. A Docas não admite que um navio atracado no seu “cais” deixe de ser servido por recusa dos trabalhadores, mesmo que estes estejam subordinados à outrem. Envia os “seus” carregadores de café para substituí-los. A Cia. Docas lida com outra noção de “eficiência”. Ela não está interessada nos acordos informais entre as companhias de navegação (armadores) e mestres-estivadores e/ou entre estes últimos e seus trabalhadores. Ela também recusa-se a praticar os preços “correntes”, ou “costumeiros”, da saca de café embarcada na faixa do Porto, já que um dos seus objetivos é “quebrar” este esquema. A Companhia insiste em pagar os seus operários por tempo de trabalho e exige submissão à “disciplina” da empresa. Assim, com a chegada da grande companhia, os trabalhadores do Porto são submetidos a outro regime de trabalho, que envolve o cumprimento de um horário rígido (10 horas) e de um ritmo de trabalho determinado. A “disciplina” da empresa será gradativamente integrada ao processo de trabalho, através de sua incorporação às instalações, máquinas e muralhas. Mas isto só se dá ao longo do tempo. Em 1905, esta “disciplina” aparece como uma política cotidiana da empresa, que submete os empregados pela forma como organiza o processo de trabalho. (GITAHY, 1992, p. 87)

Tendo em vista que a característica fundamental de um sistema portuário capitalista está na racionalização do processo produtivo, como numa fábrica, diminuindo o tempo de armazenagem e de embarque (HONORATO, 1996. P. 157), torna-se necessário também qualificar a mão de obra das empresas ligadas ao comércio portuário, orientando-o de uma maneira mais racional
As mudanças trazidas pelo ingresso da cidade em um mundo “moderno” trouxeram, portanto, conseqüências na educação. A cidade investiu na instrução pública, inaugurando, em 1900, o Grupo Escolar Cesário Bastos, o primeiro da cidade e, em 1902, o Grupo Escolar Barnabé. Houve também grande aumento no número de cadeiras de instrução primária administradas pela municipalidade. Entre 1902[1] e 1907[2], o número de cadeiras de instrução primária administradas pela municipalidade aumentou de 5 para 25.
Esta questão já vinha sendo apontada. Em artigo escrito no jornal Diário de Santos em 20 de junho de 1894, vemos o professor Carlos Escobar[3], cobrar a aplicação de recursos para a instrução primária da população e, ao referir-se à intenção da Câmara na criação de uma Academia de Comércio, chega a criticar o emprego de valores para a abertura de uma escola superior quando a instrução primária ainda era precária.
Trabalhar em uma cidade na qual a cultura escrita progredia, sem domínio das primeiras letras, era ficar à margem de certos postos de trabalho. Com o incremento do movimento portuário, multiplicaram-se as oportunidades de emprego em casas de importação e exportação, Bancos, companhias de navegação e outros grandes estabelecimentos comerciais.
Em 1907 houve uma efervescência em busca da educação na cidade, com intensa movimentação por parte dos vereadores e políticos locais para a instalação de uma Escola de Aprendizes de Marinheiro em Santos[4]. A Associação Beneficente da Companhia Docas deu início ao funcionamento de suas aulas destinadas aos trabalhadores, conforme ofício à Câmara Municipal de 05 de janeiro de 1907. A Câmara Municipal criou nesse mesmo ano uma escola primária na cadeia pública para instruir os presos sobre sua custódia.
O progresso econômico da cidade atraiu pessoas de várias regiões do país e do exterior, aumentando sensivelmente a população residente. Com o crescimento da movimentação do porto, muitos brasileiros e imigrantes estrangeiros dirigiram-se a Santos em busca de trabalho[5]. O Censo de 1913 apontava que a população estrangeira era de 45% e a nacional de 55%. Entre os estrangeiros, cerca de 63% eram do sexo masculino, e nota-se pelos censos europeus que o número de mulheres nessas localidades superava muito o de homens devidos aos fluxos emigratórios[6].
 As obras de saneamento que drenaram o solo da cidade e o aumento da população propiciaram grande expansão urbana na cidade com a abertura de novas ruas e o alargamento ou calçamento de outras. A cidade, antes restrita ao centro, chegou até a praia. Residências e outros edifícios chegaram a ser demolidos. É de se notar o curioso caso da demolição da colonial Igreja Matriz, em 1907, para o alargamento de uma rua. Novas avenidas foram abertas, a iluminação pública foi modernizada, as distâncias passaram a ser cobertas por bondes, inicialmente movidos por tração animal e substituídos posteriormente por elétricos.
Além das mudanças mais visualmente perceptíveis, ocorreram mudanças na cultura, na qual a oralidade, até então predominante, passou a ser gradualmente invadida pela escrita. Cruz (2000, p.66) aponta que

Nas ultimas décadas do século passado [XIX], misturada às necessidades colocadas pelo desenvolvimento das escritas e controles mercantis, obedecendo aos ditames da “vulgarização” impostos pela propaganda, transportada na velocidade dos novos serviços de correios e telégrafos e articulada às novas linguagens visuais da modernidade, a escrita desce do pedestal e começa a invadir a vida cotidiana da cidade.

Como resultado, as transações comerciais e a divulgação de mercadorias passaram a se dar através de novas fórmulas. Jornais estampavam os “reclames” dos produtos, a movimentação dos navios, a quantidade de mercadorias, os balancetes das várias firmas.
Se houve até certa época uma divisão do trabalho, com carroceiros, trapicheiros, banqueiros, corretores de café e outros profissionais cuidando de sua contabilidade segundo registros particulares, a entrada na modernidade e o comércio com outros países inseriram modos de escrituração padrão, aos quais os diferentes profissionais deveriam se adequar. O comércio com outros países, em moldes “modernos”, mais racionais, também demandou maior precisão na conversão cambial, no cálculo dos custos de importação e exportação, na conversão de pesos e medidas, no cálculo de impostos e taxas.
Em Santos, uma cidade predominantemente comercial, as profissões relacionadas ao comércio superavam, e muito, as demais. No Censo de 1913 foram computados 9161 empregados no comércio e classes correlatas além de 8708 empregados no transporte e comunicação, ao lado de apenas 2996 trabalhadores rurais dentro de um total de 38750 trabalhadores[7].  Este mesmo Censo aponta que grande parcela estava empregada no Comércio Exterior e em Casas Comissárias de Café. São cerca de um terço do total de comerciários.[8]
Para acompanhar as mudanças, as antigas práticas de comercialização precisariam se modernizar. Mudou-se a representação do que era adequado na forma de escrituração comercial. Passou-se a considerar que o que era aprendido informalmente, através da experiência, poderia ser mais adequadamente ensinado em escolas, através de uma formação mais técnica, ligada à modernidade. Isto levou parte da população, especialmente os comerciantes, com o apoio de educadores, a pressionar o Conselho de Intendência, então responsável pela administração municipal, neste sentido.
Por outro lado, os anúncios classificados dos jornais da Capital, segundo Cruz (2000), em meio às demandas por empregados domésticos, também passaram a anunciar vagas para guarda-livros, contadores, auxiliares de escritório, indicando a abertura de novos mercados de trabalho.
Indicando a introdução de novas práticas, as tipografias imprimem uma grande variedade de materiais como faturas, circulares, letras em branco, rótulos de produtos, [...], cartões comerciais e de visita [....]. (CRUZ, 2000, p.71)
A conjuntura apresentada foi propícia à criação da Academia de Comércio na cidade. Em novembro de 1907 a Câmara Municipal aprovou a lei n° 281, sancionada pelo então Intendente Municipal, o tenente-coronel Cincinato Martins Costa.
Não era uma experiência inédita a criação de uma escola preparatória para o comercio. Desde a chegada da família Imperial, várias tentativas de ensino comercial foram postas em ação, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, sem muito sucesso. Em 1856 foi criado o Instituto Comercial do Rio de Janeiro cuja organização curricular foi alterada várias vezes durante o século XIX até ser extinto em 1882. Em 1894 foi criado outro Instituto Comercial que foi substituído pela Academia de Comércio do Rio de Janeiro. Na cidade de São Paulo havia a Escola Prática de Comércio, criada em 1902. Em 1905 o Decreto n°1339 declarou de utilidade pública a Academia de Comércio do Rio de Janeiro, reconhecendo oficialmente o diploma fornecido pela instituição. A cidade de Juiz de Fora também já possuía sua Academia de Comércio, fundada em 1894.
A Academia de Comércio de Santos foi fruto das necessidades da cidade, que precisava se adequar à nova realidade comercial. Oportunidades de trabalho qualificado aumentaram em função do aumento do volume das importações e exportações, da movimentação de passageiros, da expansão da Cia. Docas entre outras. O mercado internacional passou, também, gradativamente, a ter mais influencia sobre o mercado interno, exigindo o acompanhamento das movimentações comerciais estrangeiras.
A demanda pelo ensino comercial, também foi influenciada pela criação de novos postos no sistema burocrático dos Estados e Municípios, que ganharam mais autonomia com a proclamação da República e conseqüentemente desenvolveram os serviços prestados, o que exigia mão de obra qualificada.
No seu trabalho sobre a evolução do ensino de contabilidade no Brasil. Peleias et alii (2007 p. 10) mencionam que entre 1889 e 1931 houve grandes alterações nos cursos comerciais, estruturando-se e adequando-se às novas necessidades do mercado.
A criação da Academia do Comércio foi, por muitos anos, insistentemente reclamada por um movimento de cidadãos santistas e pela própria Associação Comercial, mas só foi atendida no último ano do período da Intendência Municipal, quando as condições sócio-políticas foram favoráveis.
A Lei que criou a escola, proposta pelo então Inspetor literário, Dr. Raymundo Sóter de Araújo[9], e aprovada por diversos vereadores, estabeleceu que esta manteria dois cursos. O primeiro, geral, teria por objetivo formar guarda-livros, peritos judiciais e profissionais habilitados em funções da Fazenda, à semelhança do curso oferecido no Rio de Janeiro como sendo de formação geral e prático (PELEIAS et alii, 2007, p. 11).
O segundo, considerado especial superior, segundo a Lei aprovada em Santos,

habilitando mais, para os cargos de agentes consulares, funccionários do Ministérios das Relações Exteriores, actuários, de companhias de seguros e chefes de contabilidade de estabelecimentos bancários e grandes emprezas commerciaes.[10].

O primeiro regulamento da Academia do Comércio foi apresentado pelo próprio proponente da Academia de Comércio, Sóter de Araújo, no dia 15 de maio de 1907, declarando, que o trabalho não era original, sendo o resultado de um acurado estudo de regulamentos e leis que regem os estabelecimentos congêneres, existentes no paiz[11].
Se compararmos o curso de Santos com aquele oferecido pela Academia do Comércio do Rio de Janeiro, cujo diploma era legalmente reconhecido e que habilitava os candidatos para os cargos de agentes-consultores, funcionários dos Ministérios das Relações Exteriores, atuários das seguradoras, chefes de contabilidade de Bancos e de grandes empresas comerciais (PELEIAS et alii, idem), veremos que as habilitações oferecidas equivalem.
Realmente, parece que Sóter de Araújo se inspirou em instituições de referência no ensino comercial do período, como a Academia de Comércio do Rio de Janeiro e da Escola Prática de Comércio de São Paulo[12], já que a estrutura de cursos e disciplinas da Academia de Comércio de Santos era bastante semelhante a desses estabelecimentos.
Percebe-se que havia a intenção de ao espelhar-se naquelas instituições, além de buscar inspiração para a estrutura do curso, conseguir que seus diplomas fossem reconhecidos, pois, um ano após sua criação, foi pedida a equiparação da Academia de Comércio de Santos às Escolas de Comércio do Rio de Janeiro e Escola Prática de Comércio de São Paulo, declarando-a também como instituição de utilidade pública, passando seus diplomas a ter caráter oficial.[13]
Nesta escola procurava-se formar profissionais preparados para os serviços portuários, bancários, contábeis, alfandegários, além de agentes de navegação marítima e administradores para o comércio cafeeiro, ou seja, para toda uma gama de profissões e postos de trabalhos que começavam a surgir com o crescimento das exportações pelo Porto e com o desenvolvimento de Santos. Este tipo de formação tornava-se necessária devido ao advento de diferentes empresas comerciais para a região.
Como primeiro diretor foi nomeado o Sr. Aquilino do Amaral, tendo por secretário o Sr. João de Abreu. Embora o Regimento Interno previsse a permanência do diretor no cargo pelo menos durante três anos, em 1908 o Diretor e seu Secretário foram demitidos pelo Prefeito eleito, o que causou intensos protestos na Câmara, principalmente pelo Dr. Galeão Carvalhal.
Matricularam-se na Academia de Comércio pessoas que pretendiam ingressar em atividades comerciais, mas principalmente aquelas que já trabalhavam no comércio e que buscavam qualificação. O curso era oferecido no período diurno e a maioria dos alunos tinha dificuldades em freqüentar as aulas devido ao trabalho. Inicialmente, no primeiro ano, matricularam-se 28 alunos. Sete desistiram, restando 21. Desses, a freqüência média foi de 50%, índice bastante baixo. No final do curso sabe-se que apenas um aluno desta turma formou-se, Valentim Bouças, que se tornou economista de nome reconhecido no meio comercial.
A despeito disso, assumiu a Diretoria o Dr. Adolpho Porchat de Assis[14], médico, que fazia parte de um grupo de intelectuais da cidade envolvidos com novas propostas educacionais e cuja rede de sociabilidade incluía pessoas da cidade com formação superior, como médicos, advogados, engenheiros e outros intelectuais. Foram eles os primeiros professores da Academia do Comércio.
Desses intelectuais, alguns assumiram disciplinas de caráter mais geral, como Adolpho Porchat de Assis que foi professor de Geographia Geral e especialmente do Brasil e João Carvalhal Filho, de Historia do Brazil, outros lecionaram disciplinas mais especificamente profissionalizantes, como Benedicto Calixto de Jesus, Calligraphia, Desenho Linear e Industrial, Waldomiro Silveira, Noções de Direito Constitucional, Civil, Industrial e Commercial e Prática Jurídica, e José Caetano Munhoz, Contabilidade Mercantil e Legislação de Fazenda Aduaneira.
O motivo da demissão do primeiro Diretor pode ter sido político, mas também resultado de sua administração à frente da instituição e do regulamento em curso, pois em 1908, na sessão de 10 de junho, o novo diretor da Academia de Comércio, Dr. Adolpho Porchat de Assis, apresentou proposta de alteração do regulamento.[15]
É o próprio Porchat de Assis que nos diz que fez modificações nos estatutos para garantir na lei a reorganização [...] factor primordial para maior probabilidade do resultado geral[16]. Aponta ainda que o antigo regulamento continha falhas em pontos didacticos imprescindíveis á marcha uniforme e progressiva do instituto referindo-se aos itens da freqüência dos alunos e obrigatoriedade dos estudos que não estariam devidamente regulados.
O novo regulamento continha 110 artigos que tratavam da organização da escola, disciplinas e cursos oferecidos, equipamentos de auxílio pedagógico como a biblioteca, laboratório o museu comerciais, além do regimento da administração e do colegiado de professores; do ensino, forma de matrícula, aulas e exames, disciplina, penalidades e prêmios.
O regulamento procurava tornar o ensino mais prático, prevendo equipamentos como uma biblioteca comercial, com leis, regulamentos e outros livros técnicos, um Laboratório de Análises destinado não só aos estudos physico-chimicos das falsificações, como também para servir á fiscalisação municipal[17], e mesmo um Museu de Comércio onde deveriam constar amostras de produtos comerciais da região, seguindo o exemplo da já citada Academia de Comércio do Rio de Janeiro, que mantinha, desde março de 1907, um Museu Comercial, com coleções in natura dos produtos brasileiros.
Conforme BORGES (2007), este tipo de museu, nos moldes das instituições européias tinham a função pedagógica de levar os visitantes a interessarem-se sobre os produtos, forma de trabalho e consumo da localidade, mas também tinha a função de dar publicidade à produção regional, dando suporte à ampliação do mercado. 
Nesse sentido, e visando a formação do Museu Comercial, o Diretor da Academia de Comércio de Santos solicitou amostras de produtos de colheita e fabricação originários de Santos, acompanhados de memorial de esclarecimentos e especificações. Tinha o objetivo ser um núcleo de informações comerciais, sistematizando os produtos do município e permitindo estudos comparativos com similares nacionais e estrangeiros, como por exemplo, sua seção especial de exposição de cafés paulistas comparados com estrangeiros, mas também visava servir de centro de propaganda para o comércio santista.[18]
No seu primeiro relatório apresentado à Câmara, Porchat de Assis justifica as alterações no estatuto alegando que a vida social santista era

de difficil adaptação aos processos geraes pedagógicos, pela facilidade de fugir nossa mocidade à sua engrenagem, por encontrar na esphera circumscripta da vida comercial em que nos achamos, uma movimentação autônoma e portanto, livre completamente, mais seductora mesmo quanto ao lado prático e de futuro na lucta pela vida. [19]

Isto porque os jovens alunos muitas vezes já empregados e envolvidos nas atividades comerciais deixavam de freqüentar as aulas. Artigo publicado no jornal Diário de Santos[20] insiste na importância e na dedicação que os alunos devem ter nos estudos, e ao final pergunta: não seria proveitoso abandonar uma ou duas horas, durante alguns dias da semana, os cinemas e cafés e as flanações para dar ao espírito o conhecimento os necessários e elevá-lo à altura de produzir algo de distincto e aproveitável no seio de uma classe. Este comentário dá indícios de que as ausências podem não se dever apenas à dedicação que os jovens tinham ao trabalho.
Assim para acolher os alunos que eram impossibilitados de freqüentar todas as aulas, ou se interessavam apenas por uma disciplina específica, mas sem descuidar da obrigatoriedade da freqüência às aulas, o novo regulamento criou três classes de alunos: matriculados (obrigados a freqüentar o curso), livres e ouvintes (transição entre as duas classes). Os alunos excluídos do primeiro grupo, provavelmente pelo número de faltas, eram incluídos como livres. A classe de ouvintes deveria atender aqueles que se interessassem por disciplinas ou aulas específicas.
Se, no primeiro ano de funcionamento a Academia, contou com 28 alunos matriculados, no ano seguinte este número aumentou para 47. Ainda que o número de matriculados depois da alteração do regulamento tenha crescido, o problema de freqüência às aulas não se alterou por alguns anos. O não reconhecimento oficial do diploma oferecido pela escola pode ter sido um dos fatores que contribuiu para o desinteresse dos alunos.
Em 1910, a Academia de Comércio de Santos passou a oferecer, em anexo à escola de comércio, um curso ginasial.
Em 1913, tendo dificuldade em abrir o curso diurno, foram proteladas as matrículas por muitos meses, até a iniciativa da criação de um curso noturno para satisfazer as inúmeras solicitações que tem recebido de pessoas que pelos seus afazeres, não podem acompanhar o curso diurno. Pois Sendo as aulas diurnas acessíveis somente a jovens a serem iniciados no comércio foi pensada a criação de um curso noturno que viria a ser aproveitável à mocidade que por effeito de seus compromissos com as casas comerciaes onde labuta diariamente, não pode freqüentar aquele curso.[21].
Em 1917, após dificuldades financeiras pelas quais passava a Câmara Municipal, a Academia de Comércio que, desde 1912, havia passado a se chamar Instituto Educacional José Bonifácio, passou ao controle de uma Associação Mantenedora, mas ainda obtendo subvenção pública.
Andrade (1978, p. 116) trata da forma como o café trouxe nova dinâmica a Santos com suas novas necessidades ligadas aos problemas de sua exportação como o tempo de permanência dos navios no porto, a armazenagem do café, a exigência de concretização de contratos ou acordos comerciais. As operações, antes feitas entre pessoas com ligações pessoais e na base da confiança, com o aumento do volume dos negócios cedem lugar, para o financiamento deste intenso comércio, a diferentes bancos de crédito agrícola como o Banco de Crédito Real, o Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola, o que passou a exigir contratos mais técnicos e impessoais. (PEREIRA, 1980 p. 162)
Este trabalho procurou tratar das alterações nos modos de vida social e comercial da cidade de Santos, buscando entender suas influências sobre a cultura local e que se refletiram sobre as representações de intelectuais acerca da necessidade de educação, tanto elementar como profissionalizante, culminando com a criação de uma escola preparatória para as atividades comerciais. Podemos perceber que, aparentemente, mais do que o desejo de aprender novas práticas, o motivo da procura pela população em geral foi do reconhecimento oficial de sua qualificação, através de um diploma.


BIBLIOGRAFIA:

ANDRADE, Wilma Terezinha. O discurso do progresso: a evolução urbana em Santos, 1870-1930. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 1989.

BORGES, M. E. L. . Representações do Brasil Moderno para ler, ver e ouvir no circuito dos Museus Commerciais Europeus, 1906-1908. História (São Paulo), v. 26, p. 92-117, 2007.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, n. 5, v. 11, jan./abr. 1991, p.173-191.

CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana (1890-1915). São Paulo: EDUC; FAPESP, Arquivo do Estado de São Paulo, 2000.


GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do mar: trabalhadores do Porto, movimento portuário e cultura urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo: Ed. UNESP, 1992.

HONORATO, Cezar. O polvo e o porto: a Cia Docas de Santos (1888-1914). São Paulo: HUCITEC, 1996.

NAGLE, Jorge. A educação na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. vol. III, O Brasil Republicano, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

PELEIAS, Ivam Ricardo. et alii. Evolução do Ensino de contabilidade no Brasil: uma análise histórica. Revista de Contabilidade & Finanças. São Paulo,  v. 18 jun. 2007.

PEREIRA, Maria Apparecida Franco. O comissário do café no porto de Santos (1870-1920). São Paulo: USP, 1980. Dissertação de mestrado.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.



[1] Relatório da Câmara Municipal de Santos de 1902, p.16.
[2] Relatório da Câmara Municipal de Santos de 1908, p. 48.
[3] Professor, foi Diretor dos Grupos Escolares Cesário Bastos e Barnabé e Inspetor Escolar.
[4] Jornal Cidade de Santos, 20/09/1907.
[5] O Censo de 1913, p. 144 aponta que no total de 38.730 trabalhadores, 14.985 eram portugueses e entre 9.161 empregados do comércio, 1.300 eram da mesma nacionalidade.
[6] Censo de 1913 pg. 116 a 127
[7] Censo de 1913 Tabela  p.g  XXXVI
[8] Censo de 1913 Tabela  p.g  XXVI e XXV
[9] Médico formado pela Escola de Medicina da Bahia, atuou em Santos no combate às epidemias do século XIX, foi Intendente de Higiene, Inspetor Literário e Vereador por várias legislaturas. Fundou com Carlos Escobar e o médico Silvério Fontes o jornal Questão Social e o Centro Socialista de Santos.
[10] Projeto de lei de criação da Academia de Comércio apresentado em sessão de 24/04/1907. Ata p. 125 e 126
[11] Ata da Câmara Municipal de Santos, 1907, p.166
[12] Estas instituições eram referências no ensino comercial, sendo consideradas de utilidade pública e seus diplomas reconhecidos oficialmente, conforme Decreto nº 1339 de 9 de janeiro de 1905 (PELEIAS et alii, p. 26)
[13] Projeto de lei de iniciativa do deputado santista Dr. João Galeão Carvalhal, junto à Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, conforme Relatório de 1909, páginas 17.
[14] Médico Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1885, atuou como médico na Câmara Municipal de Santos, na Associação Beneficente da Cia. Docas entre outras. Lecionou na Academia de Comércio de Santos, no Liceu Feminino Santista e no Instituto D. Escolástica Rosa.
[15] Cf. Ata da Câmara municipal de Santos de 10 de junho de 1908
[16]  Relatório da Academia de Comércio de Santos, apresentado à Câmara Municipal relativo ao ano de 1908. p. 52.
[16] Jornal Diário de Santos de 05/03/1908.
[17] Regulamento da Academia de Comércio de Santos, artigo 4º, aliena c.
[18] Jornal Cidade de Santos, 22/05/1908.
[19] Relatório da Academia de Comércio de Santos, apresentado à Câmara Municipal relativo ao ano de 1908. p. 52.
[20] Jornal Diário de Santos de 23/04/1913
[21] Jornal Diário de Santos de 08/04/1913



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