NOVOS TEMPOS DEMANDAM NOVAS PRÁTICAS:
A ACADEMIA DE COMÉRCIO DE SANTOS
Marina Tucunduva Bittencourt Porto Vieira
Faculdade de Educação da USP
Anderson Manoel Caleffi
Universidade Católica de Santos
O
presente trabalho aborda a forma como as grandes transformações culturais e
sócio-econômicas ocorridas em Santos, na passagem do século XIX para o XX,
criaram novas demandas nas práticas comerciais e como estas podem ter propiciado
a fundação da Academia de Comércio de Santos.
O objetivo deste trabalho é
entender a forma como a modernização ocorrida na cidade levou a mudanças nas
representações de como deveriam ser aprendidas formas de trabalho na
escrituração comercial. Baseia-se em pesquisa documental, com a utilização de
fontes primárias, como as atas da Câmara de Santos referentes ao período, a lei
que criou a escola e os regulamentos da mesma, além de ofícios e requerimentos
desta junto à administração municipal. Este material foi cotejado com jornais
da época e material bibliográfico.
Inicialmente descreveremos
algumas das modificações ocorridas na cidade. Thompson (2008, p.88) descreve os
costumes como [...] crenças não escritas, normas sociológicas e usos asseverados na
prática, mas jamais registrados por qualquer regulamento. A cidade,
portuária, possuía uma tradição comercial, mas prioritariamente oral. Até a
inauguração da São Paulo Railway, em 1867, o café era trazido das fazendas do
interior da Província para Jundiaí e daquela cidade saia transportado por
tropas de muares até Santos. Chegando ao litoral, carroções transportavam a
mercadoria até os armazéns onde era preparado e onde aguardava o embarque.
Os
navios costumavam ficar ancorados a mais de 100 metros da margem do
porto e eram acessados por meio de longas pontes de madeira. Os sacos com o
produto eram transportados nas costas por trabalhadores e escravos dos armazéns
até os navios fundeados no outro extremo da ponte. O conjunto de armazém e
ponte de madeira, conhecido na cidade como trapiches, era explorado por
comerciantes locais.
Com
a inauguração do transporte via ferrovia, de Jundiaí a Santos, houve um avanço
no transporte de mercadorias para o porto de Santos. Com a construção da Companhia Paulista de
Estradas de Ferro que ligava Jundiaí a Campinas, o processo acelerou-se, ainda
mais, principalmente se considerarmos que houve a ligação do terminal de
Campinas com outras regiões do interior de São Paulo produtoras de café. O café
começou a chegar em maior quantidade e em maior velocidade ao porto de Santos.
Com
o crescimento de cidades no interior paulista e com o aumento do volume de
mercadorias, especialmente do café, transportadas para Santos para serem
exportadas, fez-se necessária nova linha e, em 1895, foi iniciada a construção
de outra através da Serra do Mar, que seguia paralela a linha antiga. Contudo,
apesar da chegada de grande volume de café ao porto, facilitadas pela
construção das ferrovias, a cidade não possuía infra-estrutura adequada para arcar
com o volume dos produtos chegados do interior. Os armazéns eram em número
insuficiente, assim como as pontes.
O final do
século XIX trouxe para Santos dois grandes desafios: a erradicação das
epidemias que por mais de sessenta anos assolavam a cidade, e a preparação da
infra-estrutura urbana e humana para o aumento do comércio e a crescente
exportação do café, que aumentava cada vez mais.
A
Associação Comercial era a entidade que representava os interesses da elite
comercial da cidade de Santos. Criada em 22 de dezembro de 1870, por um grupo
de comerciantes locais, pressionou o Governo do Estado que criou comissões
responsáveis pelo combate às epidemias e pelo saneamento.
A
modificação nos costumes e métodos que
nasceu com o surgimento dos navios a vapor, com as ferrovias, e com as novas
idéias trazidas pelos imigrantes, mostrou ser necessária a construção de
um cais e a modernização das operações portuárias. Foram feitas diferentes
tentativas, todas infrutíferas, para a construção do cais do porto, como a
concessão ao conde
Estrela e a Francisco de Andrade Pertence em 1870, e ao Governo da
Província de São Paulo em 1882.
Tornou-se
necessária a urgente modernização do porto, pois os trapiches e pontes de
madeira já não davam conta da intensa movimentação de mercadorias e pessoas. A
Associação Comercial, que defendia os interesses da elite comercial da cidade, inclusive
dos proprietários de trapiches, pretendia apenas reformar o que já existia, e
por isso foram recusados diversos projetos de construção do cais.
Somente
em 1888 as obras tiveram início, quando o Governo Imperial fez a concessão da
construção do cais do porto santista a um grupo de empresários que havia constituído
a sociedade Gaffreé, Guinle & Cia, posteriormente transformada na Sociedade
Anônima Companhia Docas de Santos. Inicialmente receberam a concessão para
explorar o porto por 39 anos, mediante a construção de 866 metros de cais,
armazéns e linha de ferro. Em 1890
a empresa compromete-se a construir mais 966 metros e a concessão
é ampliada para 90 anos. (GITAHY, 1992 p. 29).
Por
conta disso, a Companhia Docas de Santos, concessionária para a construção do
cais e a administração do porto, iniciou as obras que visavam substituir as
pontes e trapiches, até então responsáveis pela movimentação portuária, por um
cais onde os navios pudessem atracar. A companhia também ficou encarregada de
providenciar a infra-estrutura necessária para atender a crescente demanda do
movimento portuário, voltada para a exportação do café e para a entrada de
produtos estrangeiros, como o maquinário destinado às fábricas que surgiam na
cidade de São Paulo.
Os
grupos locais acabaram ficando fora do controle do comércio cafeeiro, principal
produto de exportação do Porto de Santos.
Mais tarde com a construção da amurada do cais, até mesmo o acesso de
terceiros passa a ser controlado pela Cia. Docas.
Muitos
conflitos surgiram inicialmente entre a Cia. Docas e os comerciantes santistas,
principalmente por conta da desapropriação e demolição dos trapiches. A concessionária
tinha o apoio das duas esferas do governo: a federal e a estadual. Diante dos
confrontos recorreu ao Governo Federal, alegando que a concessão lhe daria o
direito ao monopólio portuário e conseguiu a demolição dos trapiches. O governo
Estadual concedeu-lhe, posteriormente, também o monopólio da Alfândega
santista.
As
desavenças só começaram a chegar ao fim com o início das greves operárias, a
partir de 1891, quando a Associação Comercial e a Docas uniram suas forças
contra a paralisação dos trabalhadores do porto. A última aproveitou-se dos
ex-escravos do Quilombo do Jabaquara, apadrinhados pela elite comercial da
cidade, e os utilizou para o trabalho nas pedreiras de onde eram tiradas as pedras
para as obras do cais do porto, “furando” a greve.
A construção
e o monopólio do Porto pela Cia. Docas geram uma reorganização do trabalho e do
próprio espaço da cidade empreendida sob o signo da disciplina e da eficiência
capitalistas. (GITAHY, 1992 P. 33) Devido ao aumento do trabalho e o
monopólio dos serviços portuários a Cia. Docas passa a controlar o corpo de
carregadores e depois de outros trabalhadores portuários, passando a exigir
assim, a qualificação que deseja.
Antes
da construção do cais e da transformação do trabalho portuário, moldando-se aos
ideais capitalistas, o trabalho ocorria segundo costumes gradualmente
instituídos. O café passou a ser
prioritariamente exportado a partir da cidade apenas no final do século XIX,
quando a produção pela região do Vale do Paraíba, exportada pelo porto do Rio
de Janeiro, já havia decaído, dando lugar à expansão da lavoura cafeeira para
outras regiões da Província. Ainda que por Santos se exportasse a maior parte
do café produzido no país, as condições de trabalho no porto não acompanharam
esse desenvolvimento, se dando da mesma forma que há muitos anos, ou melhor, da
mesma forma como se dava no período colonial.
Em 1905,
quando frente a mais um greve operária, A Cia. Docas
esclarece
atritos da situação criada pela convivência entre diferentes patrões,
diferentes regras, diferentes salários no espaço do Porto. A Docas não admite
que um navio atracado no seu “cais” deixe de ser servido por recusa dos
trabalhadores, mesmo que estes estejam subordinados à outrem. Envia os “seus”
carregadores de café para substituí-los. A Cia. Docas lida com outra noção de
“eficiência”. Ela não está interessada nos acordos informais entre as
companhias de navegação (armadores) e mestres-estivadores e/ou entre estes
últimos e seus trabalhadores. Ela também recusa-se a praticar os preços
“correntes”, ou “costumeiros”, da saca de café embarcada na faixa do Porto, já
que um dos seus objetivos é “quebrar” este esquema. A Companhia insiste em
pagar os seus operários por tempo de trabalho e exige submissão à “disciplina”
da empresa. Assim, com a chegada da grande companhia, os trabalhadores do Porto
são submetidos a outro regime de trabalho, que envolve o cumprimento de um
horário rígido (10 horas) e de um ritmo de trabalho determinado. A “disciplina”
da empresa será gradativamente integrada ao processo de trabalho, através de
sua incorporação às instalações, máquinas e muralhas. Mas isto só se dá ao
longo do tempo. Em 1905, esta “disciplina” aparece como uma política cotidiana
da empresa, que submete os empregados pela forma como organiza o processo de
trabalho. (GITAHY, 1992, p. 87)
Tendo
em vista que a característica fundamental
de um sistema portuário capitalista está na racionalização do processo
produtivo, como numa fábrica, diminuindo o tempo de armazenagem e de embarque
(HONORATO, 1996. P. 157), torna-se necessário também qualificar a mão de obra
das empresas ligadas ao comércio portuário, orientando-o de uma maneira mais
racional
As mudanças
trazidas pelo ingresso da cidade em um mundo “moderno” trouxeram, portanto, conseqüências
na educação. A cidade investiu na instrução pública, inaugurando, em 1900, o
Grupo Escolar Cesário Bastos, o primeiro da cidade e, em 1902, o Grupo Escolar
Barnabé. Houve também grande aumento no número de cadeiras de instrução
primária administradas pela municipalidade. Entre 1902[1] e
1907[2], o
número de cadeiras de instrução primária administradas pela municipalidade
aumentou de 5 para 25.
Esta questão
já vinha sendo apontada. Em artigo escrito no jornal Diário de Santos em 20 de
junho de 1894, vemos o professor Carlos Escobar[3], cobrar
a aplicação de recursos para a instrução primária da população e, ao referir-se
à intenção da Câmara na criação de uma Academia de Comércio, chega a criticar o
emprego de valores para a abertura de uma escola superior quando a instrução
primária ainda era precária.
Trabalhar
em uma cidade na qual a cultura escrita progredia, sem domínio das primeiras
letras, era ficar à margem de certos postos de trabalho. Com o incremento do
movimento portuário, multiplicaram-se as oportunidades de emprego em casas de importação
e exportação, Bancos, companhias de navegação e outros grandes estabelecimentos
comerciais.
Em 1907 houve
uma efervescência em busca da educação na cidade, com intensa movimentação por
parte dos vereadores e políticos locais para a instalação de uma Escola de
Aprendizes de Marinheiro em Santos[4]. A
Associação Beneficente da Companhia Docas deu início ao funcionamento de suas
aulas destinadas aos trabalhadores, conforme ofício à Câmara Municipal de 05 de
janeiro de 1907. A
Câmara Municipal criou nesse mesmo ano uma escola primária na cadeia pública
para instruir os presos sobre sua custódia.
O
progresso econômico da cidade atraiu pessoas de várias regiões do país e do
exterior, aumentando sensivelmente a população residente. Com o crescimento da
movimentação do porto, muitos brasileiros e imigrantes estrangeiros
dirigiram-se a Santos em busca de trabalho[5]. O
Censo de 1913 apontava que a população estrangeira era de 45% e a nacional de
55%. Entre os estrangeiros, cerca de 63% eram do sexo masculino, e nota-se
pelos censos europeus que o número de mulheres nessas localidades superava
muito o de homens devidos aos fluxos emigratórios[6].
As obras de saneamento que drenaram o solo da
cidade e o aumento da população propiciaram grande expansão urbana na cidade
com a abertura de novas ruas e o alargamento ou calçamento de outras. A cidade,
antes restrita ao centro, chegou até a praia. Residências e outros edifícios
chegaram a ser demolidos. É de se notar o curioso caso da demolição da colonial
Igreja Matriz, em 1907, para o alargamento de uma rua. Novas avenidas foram
abertas, a iluminação pública foi modernizada, as distâncias passaram a ser
cobertas por bondes, inicialmente movidos por tração animal e substituídos
posteriormente por elétricos.
Além
das mudanças mais visualmente perceptíveis, ocorreram mudanças na cultura, na
qual a oralidade, até então predominante, passou a ser gradualmente invadida
pela escrita. Cruz (2000, p.66) aponta que
Nas ultimas décadas do século passado [XIX], misturada
às necessidades colocadas pelo desenvolvimento das escritas e controles
mercantis, obedecendo aos ditames da “vulgarização” impostos pela propaganda,
transportada na velocidade dos novos serviços de correios e telégrafos e
articulada às novas linguagens visuais da modernidade, a escrita desce do
pedestal e começa a invadir a vida cotidiana da cidade.
Como
resultado, as transações comerciais e a divulgação de mercadorias passaram a se
dar através de novas fórmulas. Jornais estampavam os “reclames” dos produtos, a
movimentação dos navios, a quantidade de mercadorias, os balancetes das várias
firmas.
Se houve até
certa época uma divisão do trabalho, com carroceiros, trapicheiros, banqueiros,
corretores de café e outros profissionais cuidando de sua contabilidade segundo
registros particulares, a entrada na modernidade e o comércio com outros países
inseriram modos de escrituração padrão, aos quais os diferentes profissionais
deveriam se adequar. O comércio com outros países, em moldes “modernos”, mais
racionais, também demandou maior precisão na conversão cambial, no cálculo dos
custos de importação e exportação, na conversão de pesos e medidas, no cálculo
de impostos e taxas.
Em Santos, uma
cidade predominantemente comercial, as profissões relacionadas ao comércio
superavam, e muito, as demais. No Censo de 1913 foram computados 9161
empregados no comércio e classes correlatas além de 8708 empregados no
transporte e comunicação, ao lado de apenas 2996 trabalhadores rurais dentro de
um total de 38750 trabalhadores[7]. Este mesmo Censo aponta que grande parcela estava
empregada no Comércio Exterior e em Casas Comissárias
de Café. São cerca de um terço do total de comerciários.[8]
Para
acompanhar as mudanças, as antigas práticas de comercialização precisariam se
modernizar. Mudou-se a representação do que era adequado na forma de
escrituração comercial. Passou-se a considerar que o que era aprendido
informalmente, através da experiência, poderia ser mais adequadamente ensinado
em escolas, através de uma formação mais técnica, ligada à modernidade. Isto levou
parte da população, especialmente os comerciantes, com o apoio de educadores, a
pressionar o Conselho de Intendência, então responsável pela administração
municipal, neste sentido.
Por
outro lado, os anúncios classificados dos jornais da Capital, segundo Cruz
(2000), em meio às demandas por empregados domésticos, também passaram a
anunciar vagas para guarda-livros, contadores, auxiliares de escritório,
indicando a abertura de novos mercados de trabalho.
Indicando
a introdução de novas práticas, as
tipografias imprimem uma grande variedade de materiais como faturas,
circulares, letras em branco, rótulos de produtos, [...], cartões comerciais e de visita [....]. (CRUZ, 2000, p.71)
A
conjuntura apresentada foi propícia à criação da Academia de Comércio na cidade.
Em novembro de 1907 a
Câmara Municipal aprovou a lei n° 281, sancionada pelo então Intendente
Municipal, o tenente-coronel Cincinato Martins Costa.
Não
era uma experiência inédita a criação de uma escola preparatória para o
comercio. Desde a chegada da família Imperial, várias tentativas de ensino
comercial foram postas em ação, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, sem
muito sucesso. Em 1856 foi criado o Instituto Comercial do Rio de Janeiro cuja
organização curricular foi alterada várias vezes durante o século XIX até ser
extinto em 1882. Em 1894 foi criado outro Instituto Comercial que foi
substituído pela Academia de Comércio do Rio de Janeiro. Na cidade de São Paulo
havia a Escola Prática de Comércio, criada em 1902. Em 1905 o Decreto n°1339
declarou de utilidade pública a Academia de Comércio do Rio de Janeiro,
reconhecendo oficialmente o diploma fornecido pela instituição. A cidade de
Juiz de Fora também já possuía sua Academia de Comércio, fundada em 1894.
A Academia de
Comércio de Santos foi fruto das necessidades da cidade, que precisava se adequar
à nova realidade comercial. Oportunidades de trabalho qualificado aumentaram em
função do aumento do volume das importações e exportações, da movimentação de
passageiros, da expansão da Cia. Docas entre outras. O mercado internacional
passou, também, gradativamente, a ter mais influencia sobre o mercado interno,
exigindo o acompanhamento das movimentações comerciais estrangeiras.
A demanda
pelo ensino comercial, também foi influenciada pela criação de novos postos no
sistema burocrático dos Estados e Municípios, que ganharam mais autonomia com a
proclamação da República e conseqüentemente desenvolveram os serviços prestados,
o que exigia mão de obra qualificada.
No seu
trabalho sobre a evolução do ensino de contabilidade no Brasil. Peleias et alii
(2007 p. 10) mencionam que entre 1889 e 1931 houve grandes alterações nos
cursos comerciais, estruturando-se e adequando-se às novas necessidades do mercado.
A criação da Academia do Comércio
foi, por muitos anos, insistentemente reclamada por um movimento de cidadãos
santistas e pela própria Associação Comercial, mas só foi atendida no último
ano do período da Intendência Municipal, quando as condições sócio-políticas
foram favoráveis.
A
Lei que criou a escola, proposta pelo então Inspetor literário, Dr. Raymundo
Sóter de Araújo[9], e
aprovada por diversos vereadores, estabeleceu que esta manteria dois cursos. O
primeiro, geral, teria por objetivo
formar guarda-livros, peritos judiciais e profissionais habilitados em funções da
Fazenda, à semelhança do curso oferecido no Rio de Janeiro como sendo de formação geral e prático (PELEIAS et alii,
2007, p. 11).
O
segundo, considerado especial superior,
segundo a Lei aprovada em Santos,
habilitando
mais, para os cargos de agentes consulares, funccionários do Ministérios das
Relações Exteriores, actuários, de companhias de seguros e chefes de contabilidade
de estabelecimentos bancários e grandes emprezas commerciaes.[10].
O primeiro
regulamento da Academia do Comércio foi apresentado pelo próprio proponente da
Academia de Comércio, Sóter de Araújo, no dia 15 de maio de 1907, declarando, que o trabalho não era original,
sendo o resultado de um acurado estudo de regulamentos e leis que regem os
estabelecimentos congêneres, existentes no paiz[11].
Se
compararmos o curso de Santos com aquele oferecido pela Academia do Comércio do
Rio de Janeiro, cujo diploma era legalmente reconhecido e que habilitava os candidatos para os cargos de
agentes-consultores, funcionários dos Ministérios das Relações Exteriores,
atuários das seguradoras, chefes de contabilidade de Bancos e de grandes
empresas comerciais (PELEIAS et alii, idem), veremos que as habilitações
oferecidas equivalem.
Realmente,
parece que Sóter de Araújo se inspirou em instituições de referência no ensino
comercial do período, como a Academia de Comércio do Rio de Janeiro e da Escola
Prática de Comércio de São Paulo[12],
já que a estrutura de cursos e disciplinas da Academia de Comércio de Santos
era bastante semelhante a desses estabelecimentos.
Percebe-se
que havia a intenção de ao espelhar-se naquelas instituições, além de buscar inspiração
para a estrutura do curso, conseguir que seus diplomas fossem reconhecidos,
pois, um ano após sua criação, foi pedida a equiparação da Academia de Comércio
de Santos às Escolas de Comércio do Rio de Janeiro e Escola Prática de Comércio
de São Paulo, declarando-a também como instituição de utilidade pública,
passando seus diplomas a ter caráter oficial.[13]
Nesta escola
procurava-se formar profissionais preparados para os serviços portuários,
bancários, contábeis, alfandegários, além de agentes de navegação marítima e
administradores para o comércio cafeeiro, ou seja, para toda uma gama de
profissões e postos de trabalhos que começavam a surgir com o crescimento das
exportações pelo Porto e com o desenvolvimento de Santos. Este tipo de formação
tornava-se necessária devido ao advento de diferentes empresas comerciais para
a região.
Como primeiro
diretor foi nomeado o Sr. Aquilino do Amaral, tendo por secretário o Sr. João
de Abreu. Embora o Regimento Interno previsse a permanência do diretor no cargo
pelo menos durante três anos, em 1908 o Diretor e seu Secretário foram
demitidos pelo Prefeito eleito, o que causou intensos protestos na Câmara,
principalmente pelo Dr. Galeão Carvalhal.
Matricularam-se
na Academia de Comércio pessoas que pretendiam ingressar em atividades comerciais,
mas principalmente aquelas que já trabalhavam no comércio e que buscavam
qualificação. O curso era oferecido no período diurno e a maioria dos alunos
tinha dificuldades em freqüentar as aulas devido ao trabalho. Inicialmente, no
primeiro ano, matricularam-se 28 alunos. Sete desistiram, restando 21. Desses,
a freqüência média foi de 50%, índice bastante baixo. No final do curso sabe-se
que apenas um aluno desta turma formou-se, Valentim Bouças, que se tornou
economista de nome reconhecido no meio comercial.
A despeito
disso, assumiu a Diretoria o Dr. Adolpho Porchat de Assis[14],
médico, que fazia parte de um grupo de intelectuais da cidade envolvidos com
novas propostas educacionais e cuja rede de sociabilidade incluía pessoas da
cidade com formação superior, como médicos, advogados, engenheiros e outros
intelectuais. Foram eles os primeiros professores da Academia do Comércio.
Desses
intelectuais, alguns assumiram disciplinas de caráter mais geral, como Adolpho
Porchat de Assis que foi professor de Geographia
Geral e especialmente do Brasil e João
Carvalhal Filho, de Historia do Brazil,
outros lecionaram disciplinas mais especificamente profissionalizantes, como Benedicto Calixto de Jesus, Calligraphia, Desenho Linear e Industrial, Waldomiro
Silveira, Noções de Direito
Constitucional, Civil, Industrial e Commercial e Prática Jurídica, e José
Caetano Munhoz, Contabilidade Mercantil e
Legislação de Fazenda Aduaneira.
O motivo da
demissão do primeiro Diretor pode ter sido político, mas também resultado de
sua administração à frente da instituição e do regulamento em curso, pois em 1908,
na sessão de 10 de junho, o novo diretor da Academia de Comércio, Dr. Adolpho
Porchat de Assis, apresentou proposta de alteração do regulamento.[15]
É o próprio
Porchat de Assis que nos diz que fez modificações nos estatutos para garantir na lei a reorganização [...]
factor primordial para maior probabilidade do resultado geral[16].
Aponta ainda que o antigo regulamento continha falhas em pontos didacticos imprescindíveis á marcha uniforme e progressiva do
instituto referindo-se aos itens da freqüência dos alunos e obrigatoriedade
dos estudos que não estariam devidamente regulados.
O novo
regulamento continha 110 artigos que tratavam da organização da escola,
disciplinas e cursos oferecidos, equipamentos de auxílio pedagógico como a
biblioteca, laboratório o museu comerciais, além do regimento da administração
e do colegiado de professores; do ensino, forma de matrícula, aulas e exames,
disciplina, penalidades e prêmios.
O regulamento
procurava tornar o ensino mais prático, prevendo equipamentos como uma
biblioteca comercial, com leis, regulamentos e outros livros técnicos, um Laboratório
de Análises destinado não só aos estudos
physico-chimicos das falsificações, como também para servir á fiscalisação
municipal[17],
e mesmo um Museu de Comércio onde deveriam constar amostras de produtos
comerciais da região, seguindo o exemplo da já citada Academia de Comércio do
Rio de Janeiro, que mantinha, desde março de 1907, um Museu Comercial, com coleções
in natura dos produtos brasileiros.
Conforme
BORGES (2007), este tipo de museu, nos moldes das instituições européias tinham
a função pedagógica de levar os visitantes a interessarem-se sobre os produtos,
forma de trabalho e consumo da localidade, mas também tinha a função de dar
publicidade à produção regional, dando suporte à ampliação do mercado.
Nesse
sentido, e visando a formação do Museu Comercial, o Diretor da Academia de
Comércio de Santos solicitou amostras de produtos de colheita e fabricação
originários de Santos, acompanhados de memorial de esclarecimentos e
especificações. Tinha o objetivo ser um núcleo de informações comerciais,
sistematizando os produtos do município e permitindo estudos comparativos com
similares nacionais e estrangeiros, como por exemplo, sua seção especial de
exposição de cafés paulistas comparados com estrangeiros, mas também visava
servir de centro de propaganda para o comércio santista.[18]
No seu
primeiro relatório apresentado à Câmara, Porchat de Assis justifica as
alterações no estatuto alegando que a vida social santista era
de difficil
adaptação aos processos geraes pedagógicos, pela facilidade de fugir nossa
mocidade à sua engrenagem, por encontrar na esphera circumscripta da vida
comercial em que nos achamos, uma movimentação autônoma e portanto, livre
completamente, mais seductora mesmo quanto ao lado prático e de futuro na lucta
pela vida. [19]
Isto porque
os jovens alunos muitas vezes já empregados e envolvidos nas atividades
comerciais deixavam de freqüentar as aulas. Artigo publicado no jornal Diário
de Santos[20] insiste
na importância e na dedicação que os alunos devem ter nos estudos, e ao final
pergunta: não seria proveitoso abandonar
uma ou duas horas, durante alguns dias da semana, os cinemas e cafés e as
flanações para dar ao espírito o conhecimento os necessários e elevá-lo à
altura de produzir algo de distincto e aproveitável no seio de uma classe. Este
comentário dá indícios de que as ausências podem não se dever apenas à
dedicação que os jovens tinham ao trabalho.
Assim para
acolher os alunos que eram impossibilitados de freqüentar todas as aulas, ou se
interessavam apenas por uma disciplina específica, mas sem descuidar da
obrigatoriedade da freqüência às aulas, o novo regulamento criou três classes
de alunos: matriculados (obrigados a freqüentar o curso), livres e ouvintes
(transição entre as duas classes). Os alunos excluídos do primeiro grupo,
provavelmente pelo número de faltas, eram incluídos como livres. A classe de
ouvintes deveria atender aqueles que se interessassem por disciplinas ou aulas
específicas.
Se, no
primeiro ano de funcionamento a Academia, contou com 28 alunos matriculados, no
ano seguinte este número aumentou para 47. Ainda que o número de matriculados
depois da alteração do regulamento tenha crescido, o problema de freqüência às
aulas não se alterou por alguns anos. O não reconhecimento oficial do diploma
oferecido pela escola pode ter sido um dos fatores que contribuiu para o
desinteresse dos alunos.
Em 1910, a Academia de Comércio
de Santos passou a oferecer, em anexo à escola de comércio, um curso ginasial.
Em
1913, tendo dificuldade em abrir o curso diurno, foram proteladas as matrículas
por muitos meses, até a iniciativa da criação de um curso noturno para satisfazer as inúmeras solicitações que tem recebido
de pessoas que pelos seus afazeres, não podem acompanhar o curso diurno.
Pois Sendo as aulas diurnas acessíveis
somente a jovens a serem iniciados no comércio foi pensada a criação de um
curso noturno que viria a ser aproveitável
à mocidade que por effeito de seus compromissos com as casas comerciaes onde
labuta diariamente, não pode freqüentar aquele curso.[21].
Em 1917, após
dificuldades financeiras pelas quais passava a Câmara Municipal, a Academia de
Comércio que, desde 1912, havia passado a se chamar Instituto Educacional José
Bonifácio, passou ao controle de uma Associação Mantenedora, mas ainda obtendo
subvenção pública.
Andrade (1978,
p. 116) trata da forma como o café trouxe nova dinâmica a Santos com suas novas
necessidades ligadas aos problemas de sua
exportação como o tempo de permanência dos navios no porto, a armazenagem
do café, a exigência de concretização de contratos ou acordos comerciais. As
operações, antes feitas entre pessoas com ligações pessoais e na base da
confiança, com o aumento do volume dos negócios cedem lugar, para o
financiamento deste intenso comércio, a diferentes bancos de crédito agrícola
como o Banco de Crédito Real, o Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola, o que
passou a exigir contratos mais técnicos e impessoais. (PEREIRA, 1980 p. 162)
Este
trabalho procurou tratar das alterações nos modos de vida social e comercial da
cidade de Santos, buscando entender suas influências sobre a cultura local e
que se refletiram sobre as representações de intelectuais acerca da necessidade
de educação, tanto elementar como profissionalizante, culminando com a criação
de uma escola preparatória para as atividades comerciais. Podemos perceber que,
aparentemente, mais do que o desejo de aprender novas práticas, o motivo da
procura pela população em geral foi do reconhecimento oficial de sua
qualificação, através de um diploma.
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na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização
Brasileira. vol. III, O Brasil Republicano, Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1990.
PELEIAS, Ivam Ricardo.
et alii. Evolução do Ensino de contabilidade no Brasil: uma análise histórica. Revista de Contabilidade & Finanças.
São Paulo, v. 18 jun. 2007.
PEREIRA, Maria
Apparecida Franco. O comissário do café
no porto de Santos (1870-1920). São Paulo: USP, 1980. Dissertação de
mestrado.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[1]
Relatório da Câmara Municipal de Santos de 1902, p.16.
[2]
Relatório da Câmara Municipal de Santos de 1908, p. 48.
[3]
Professor, foi Diretor dos Grupos Escolares Cesário Bastos e Barnabé e Inspetor
Escolar.
[4] Jornal
Cidade de Santos, 20/09/1907.
[5] O Censo
de 1913, p. 144 aponta que no total de 38.730 trabalhadores, 14.985 eram
portugueses e entre 9.161 empregados do comércio, 1.300 eram da mesma
nacionalidade.
[6] Censo de
1913 pg. 116 a
127
[7] Censo de
1913 Tabela p.g XXXVI
[8] Censo de
1913 Tabela p.g XXVI e XXV
[9]
Médico formado pela Escola de Medicina da Bahia, atuou em Santos no combate às
epidemias do século XIX, foi Intendente de Higiene, Inspetor Literário e
Vereador por várias legislaturas. Fundou com Carlos Escobar e o médico Silvério
Fontes o jornal Questão Social e o Centro Socialista de Santos.
[10] Projeto
de lei de criação da Academia de Comércio apresentado em sessão de 24/04/1907.
Ata p. 125 e 126
[11] Ata da Câmara
Municipal de Santos, 1907, p.166
[12] Estas instituições eram referências no ensino
comercial, sendo consideradas de utilidade pública e seus diplomas reconhecidos
oficialmente, conforme Decreto nº 1339 de 9 de janeiro de 1905 (PELEIAS et
alii, p. 26)
[13] Projeto
de lei de iniciativa do deputado santista Dr. João Galeão Carvalhal, junto à
Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, conforme Relatório de 1909,
páginas 17.
[14] Médico
Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1885, atuou como médico
na Câmara Municipal de Santos, na Associação Beneficente da Cia. Docas entre
outras. Lecionou na Academia de Comércio de Santos, no Liceu Feminino Santista
e no Instituto D. Escolástica Rosa.
[15] Cf. Ata
da Câmara municipal de Santos de 10 de junho de 1908
[16] Relatório da Academia de Comércio de Santos, apresentado
à Câmara Municipal relativo ao ano de 1908. p. 52.
[16] Jornal
Diário de Santos de 05/03/1908.
[17]
Regulamento da Academia de Comércio de Santos, artigo 4º, aliena c.
[18] Jornal
Cidade de Santos, 22/05/1908.
[19] Relatório
da Academia de Comércio de Santos, apresentado à Câmara Municipal relativo ao
ano de 1908. p. 52.
[20] Jornal
Diário de Santos de 23/04/1913
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