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CIRCULAÇÃO ENTRE MUNDOS: QUESTÃO SOCIAL E FORMAÇÃO DE TRABALHADORES E IMIGRANTES EM SANTOS (SEC XIX) - PARTE 2

As diversas nacionalidades presentes em Santos se organizaram em Centros e fundaram iniciativas comosociedades beneficentes e de auxílio mútuo, mas especialmente atividades educacionais, como forma de inserção social.
De fato, os imigrantes que chegavam a cidade se organizaram em Centros e Associações, com o objetivo de auxílio mútuo. Parte dessas instituições mantiveram cursos e bibliotecas para a formação de seus associados, como foi o caso do Real Centro Português (1895), Centro Espanol Y Repatriación de Santos (1895) e da Societá Italiana diBenficenza (1897).
Ghiraldelli afirma que grupos de trabalhadores socialistas fundaram diversos estabelecimentos escolares pelo Brasil, inclusive em Santos[1]:
As “escolas operárias”, fundadas e mantidas pelos agrupamentos socialistas, se desenvolveram em vários estados brasileiros. A imprensa operária registrou o funcionamento desses estabelecimentos. Em Santos (SP), por exemplo, o grupo de socialistas ligados ao jornal-revistaA Questão Social fundou uma escola para trabalhadores: ‘ – Escola Barnabé – em breve começarão as obras dessa escola. A Infância pobre, no futuro, há de reconhecer os serviços que lhe prestarem espíritos bem intencionados, socialistas... espontâneos” (A Questão Social, 1895)   (GHIRALDELLI JR 1986 p. 32-33)
Foram diversas as escolas fundadas por grupos de imigrantes em Santos.Segundo Pereira (1996, p. 132), funcionaram no período estudado: o Colégio Alemão, Colégio Hispano-Português, Colégio Teuto Brasileiro, DeutscherSchulverein (Escola Alemã), e ainda as escolas da Sociedade Centro Hespanhol e da Societá Italiana diBeneficenza.
“Se a escola possibilitava a inclusão do imigrante na sociedade local, ela também possibilitava a inclusão da sociedade local na escola, oferecendo ensino gratuito e de acordo com o currículo nacional. (BRASIL p. 07)
Existiram ainda associações e escolas próprias dos operários e trabalhadores santistas, que contaram em seus quadros com muitos imigrantes, como é o caso, por exemplo, da Sociedade União Operária, da Escola do Povo, da Sociedade Auxiliadora da Instrução e da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio.
A Sociedade União Operária manteve escola, biblioteca e cursos, atendendo diversos operários e seus filhos, e tinha como um dos principais objetivos de seu estatuto o “engrandecimento cultural do operário”:
Nascida em uma cidade portuária, que estava se modernizando, a Sociedade foi fundada por um grupo de operários e mestres-de-obras da construção civil, alguns de inspiração anarquista, com sócios em grande parte imigrantes: portugueses, espanhóis e, em menor escala, italianos. Em 1902, possuía 1.700 sócios. Entidade de auxílio mútuo e instrução (saúde, funeral, desemprego, crédito, recursos jurídicos),
colocava a formação cultural em destaque” (PEREIRA, 2009 p. 69)

O pioneirismo de Santos nas lutas operárias e na questão social da República Velha, bem como, a influência da presença dos imigrantes estrangeiros e os anos de lutas para as conquistas trabalhistas, são apontados em trabalhos como e de Campos e Gomes. Os autores citam como exemplo a greve de 1889, na qual trabalhadores, sob a liderança de um português e um espanhol marcharam pela cidade munidos de paus e revólveres (CAMPOS E GOMES, 2007 p. 07).
As greves dos trabalhadores portuários em Santos foram noticiadas em jornais operários imigrantes como La Bataglia e Avanti: a de 1891 dos empregados nos escritórios e telegrafistas da São Paulo Railway; a de 1896-97 de chapeleiros de São Paulo, articulados pelo Centro Socialista; a de 1905 dos estivadores santistas; a greve de 1908 de todos os empregados da Docas pela jornada de oitos horas, que se alastrou pelos carroceiros e ensacadores de café; e a de 1912 no qual todos os serviços das Docas são paralisados, sendo reprimidos severamente pela polícia que chegou a saquear a Federação Operária de Santos. (CAMPOS e GOMES, 2007 p. 8)
Essas notícias são exemplo de comoos ideais não circulavam apenas nos locais de sociabilidade próprios dos imigrantes, mas extrapolavam os limites da colônia. Os jornais são exemplo da circulação de ideias e da formação e de auxílio na luta dos trabalhadores.
Martins (2010) aponta a presença de espanhóis a frente da redação de diferentes jornais destinados aos operários, A Terra Livre, O LibertárioO Socialista, O Grito del PuebloEl Progresso, O Jornal Operário dentre outros. Já Costa (2012) apresenta periódicos operários dirigidos por nacionais na capital federal, como A Voz do Povo (1890), O Despertar (1893), A Nova Revista (1896) eO Libealista (1899).
A imprensa tem papel fundamental na circulação de ideias. Em trabalho sobre a imprensa em Santos, Alexandre Alves analisa os jornais santistas “como instrumentos essenciais no processo de transformação da cidade, nas lutas sociais e na constituição da identidade da mais importante cidade portuária do Brasil”. (ALVES 2007 p. 39)
Santos foi uma das primeiras cidades paulistas a ter imprensa. Alves aponta que entre 1849 e 1930 a cidade contou com mais de duzentos jornais e mais de duas dezenas de revistas, o que demostra uma dinâmica própria e a grande circulação de informações e ideias. Provavelmente isso acontecia devido a sua proximidade e ligação íntima com São Paulo e por suas atividades portuárias.
Desde seu primeiro jornal, Revista Comercial de 1849, do professor alemãoGuilherme Dellius, já se discutiam a inviabilidade do trabalho escravo e a vantagem da mão-de-obra livre para a maior eficiência das atividades comerciais e portuárias.
Além das questões comerciais, a urbanização, o combate às epidemias, a luta pela abolição da escravidão e a propaganda republicana foram objetos dos mais variados títulos. Essas ideias somadas ao crescente aburguesamento da cidade e crescimento populacional, especialmente imigração, favoreceram a variedade de títulos. “A imprensa tende a se segmentar e se partidarizar, refletindo as lutas políticas e ideológicas do período” (ALVES p. 46).
Existiu também a Imprensa Operária, fruto da luta por melhores condições de trabalho no porto: em 1889 surgia o “primeiro núcleo socialista de que se tem notícia no Brasil” e que contava com seu jornal “A Ação Social” e depois “A Questão Social”; e também os jornais “União dos Operários” e “Operário” ligados respectivamente à União dos Operários e ao Partido Operário santistas.
As três organizações - o Centro Socialista, a União Operária e o Partido Operário - unem-se em 1896 para formar o Partido Operário Socialista, que teve duração efêmera devido à falta de base social. Benedito Ramos fundaria em 1897 o jornal A Greve e Silvério Fontes participaria da criação do diário redigido em italiano Avanti! em 1900, além de colaborar na organização do Segundo Congresso Socialista Brasileiro (1902), no qual foi criado o Partido Socialista Brasileiro. (ALVES p. 57)
A imprensa no período, mais do que noticiosa, servia para divulgação de conceitos, correntes e ideais. Entre os operários circulavam os ideias da chamada esquerda, especialmente anarquismo, comunismo e socialismo:
É o caso do socialismo reformista que tem como seus mentores os intelectuais: Silvério Fontes (médico), Carlos Escobar (professor) e Raimundo Sóter de Araújo (farmacêutico e médico), ilustrados ecléticos (positivismo evolucionista) com influencia na administração escolar e fundadores do periódico “A Questão Social” (1895) que durou dois anos divulgando ideias socialistas” (PEREIRA, 1996 p. 84)
O referido jornal “A Questão Social”, tinha como objetivo a divulgação de ideias socialistas, e fazia isso, inclusive, com textos destinados especificamente a imigrantes, mesmo na língua estrangeira, como o italiano.Foi fundado por três “intelectuais” militantes, criadores do Centro Socialista de Santos: Silvério Fontes, Carlos Escobar e Raimundo Sóter de Araújo[2].
Nesse periódico podemos perceber sinais e indícios que dão luz a questão da formação informal e principalmente na influencia de brasileiros sobre o pensamento dos trabalhadores e demais imigrantes.
Havia a preocupação com a explicação de conceitos, traduções de obras estrangeiras, da divulgação do pensamento de autores do socialismo, e também a formação e oferecimento de uma biblioteca.
Das oitos páginas do jornal, seis eram dedicadas à doutrina socialista, com discussões sobre obras estrangeiras ou nacionais, de autores, como: Mermeix, A.F. Shaffle, Vitor Hugo, entre outros.
Em praticamente todos os números consultados,foram publicadosartigos em italiano, escritos por Spiridione de Medicis, sobre diferentes temas ligados a luta trabalhista e doutrina socialista. Tal fato é indício da intenção de atingir a colônia italiana, e os que militavam na cidade de São Paulo, onde era maior o número de trabalhadores dessa origem.
Conceitos e definições do socialismo como supervalor, reforma, família, são explicados no jornal pelo professor Carlos Escobar. Há uma coluna específica sobre a “Doutrina Socialista”, outra sobre os “Vícios do Capitalismo”, além de “Notas e Pensamentos” onde os autores apresentam opiniões sobre questões do mundo do trabalho. Por exemplo, no segundo número do jornal o professor Carlos Escobar apresenta artigo dirigido aos espíritas, explicando a proximidade entre essa doutrina e a questão social. Já no quinto número explica diferenças entre jacobinos e socialistas e internacionalismo e patriotismo.
Havia ainda uma sessão de notícias, com a divulgação de fatos internacionais sobre o socialismo, como a morte de Engels e greves na França. Esta coluna publicava também apoio ao movimento operário nacional, como o à comemoração do Primeiro de Maio no Brasil e à reivindicação dos caixeiros na redução da jornada de trabalho de 14 para 12 horas.
O periódico propiciava a circulação do pensamento de autores estrangeiros entre os leitores, com a publicação de traduções e resumos, como de “A quintessência do socialismo” de A.F. Shafell e “La France Socialiste” de Mermeix.
Além disso, em todos os números, na última pagina do jornal, publicava-se a relação dos livros da biblioteca do Centro Socialista, convidando e recomendando a leitura dos mesmos. Entre as obras desse acervo estavam: “Le Capital’ do Karl Marx, “Le ConqueteduPain” e “Paroles d’um Revolté”, de Kropotkine, “Socialismo e scieza positiva” de Enrico Ferri, entre vários outros.
Ideias eram ainda apregoadas por meio de citações e frases de autores de referência, como Voltaire: “A liberdade é um tesouro que niguem conserva senão com a condição de usar d’elle” eChevalier “O homem que tem fome não é livre”.
Assim, o jornal “A Questão Social”, entre outros exemplos da imprensa do período, juntamente com os espaços de sociabilidade como escolas, bibliotecas e centros de nacionalidades, indicam a existência de formação dos trabalhadores migrantes em solo brasileiro; eram locais de formação, de discussão, de circulação de ideias, de articulação política e social entre estrangeiros e brasileiros.
A pesquisa realizada até o momento, e as questões suscitadas instigam a continuidade e aprofundamento da investigação a respeito da circulação de sujeitos, ideias e objetos entre regiões, procurando compreender as intimas relações entre o Brasil e os países de origem dos imigrantes santistas, especialmente Portugal, Espanha e Itália, demonstrando a conexão e mutua influencia entre essas sociedades.



[1]A referida Escola Barnabé foi criada pelo Estado, e só iniciou seu funcionamento em 1902, contando com o socialista Carlos Escobar como seu primeiro diretor.

[2] “Silvério Fontes fundou o Centro Socialista e organizou sua Biblioteca. Foi Inspetor Literário. Atuou na Sociedade União Operária. Carlos Escobar é o primeiro diretor do primeiro Grupo escolas estadual de Santos, o ‘Cesário Bastos’. Soter de Araújo foi também Inspetor Literário, médico da Sociedade União Operária, sócio fundador da Sociedade Protetora da Infância Desvalida, presidente da Sociedade Auxiliadora da Instrução” (PEREIRA, 1996 p.84)

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