CIRCULAÇÃO ENTRE MUNDOS: QUESTÃO SOCIAL E FORMAÇÃO DE TRABALHADORES E IMIGRANTES EM SANTOS (SEC XIX) - PARTE 1
Ao estudarmos a cidade de Santos[1] no
século XIX é inevitável referências aos imigrantes que chegaram à cidade, de
passagem para a lavoura cafeeira, ou para as atividades do porto, bem como, ao
movimento operário com suas lutas e greves por melhores condições de trabalho.
De maneira geral as pesquisas sobre o assunto demonstram a influência
estrangeira no movimentooperário e também no cotidiano da cidade. Mas há pouco
sobre como esse processo se deu, e sobre a influência que os imigrantes tiveram
dos nacionais, especialmente em se tratando da participação nas questões
sociais.
A escassez de fontes e a especificidade do problema torna difícil
compreender esses processos. Contudo, há sinais e indícios que permitem ao
menos iniciar a compreensão dessa questão.
Gvirtz, Vidal e Biccas, traçando as características das vertentes de
estudo da história comparada, trazem elementos que nos ajudam a pensar a
questão deste trabalho. Apontam a contribuição de Ginzburg e Gruzinski: o
primeiro que “assume como potencialmente
mais rica a documentação mais improvável, percebendo toda configuração social
como resultado da interação de incontáveis estratégias individuais”; e o
segundo que, ao dar atenção aos sujeitos em trânsito entre mundos, considera-os
“passadores de sociedades e culturas”
possibilitando
“romper com os limites impostos aos estudos pelas fronteiras
geográficas, ao mesmo tempo conciliam o interesse em apreciar as diferentes
representações sócio históricas e as maneira como se foram produzindo novas
sínteses, resultado de apropriações e da circulação de saberes, mercadorias e
homens”(2009 pg.27)
Diante dessa perspectiva, o jornal santista ”A Questão Social”[2] pode
contribuir para o entendimento de como se dava estapassagem entre sociedades e
culturas europeia e brasileira, entre os trabalhadores, inclusive imigrantes,
em Santos no século XIX.
As três ultimas décadas do séc. XIX
foram de mudanças em São Paulo, e Santos é um local privilegiado para
percebê-las, devido do porto em expansão. Entre essas transformações estão a
ferrovia, a infraestrutura urbana e o aumento de negociantes, partes do
processo de crescimento do porto.
Nesse períodoSantostornou-se conhecida
por seu porto, maior exportador do café do Brasil e também pelas lutas do
movimento operário no século XIX e início do XX.O crescimento das atividades
portuárias, notadamente relacionadas ao comércio do cafeeiro, foi uma das
motivações para a vinda de pessoas de fora da cidade especialmente imigrantes
para Santos. As condições de trabalho, contato com ideais e correntes
filosóficas de esquerda firmaram uma classe operária consciente e aguerrida na
luta por seus direitos. Como foram muitos os movimentos por melhores condições
de trabalho, e greves, por isso, Santos ficou conhecida como a “Barcelona brasileira”.
Autores que estudaram a cidade de Santos no período apontam a forte
relação entre a presença de imigrantes e o movimento operário: “Santos era vista como a terra da promissão,
da liberdade (...) ou ainda a Barcelona operária brasileira” (LANNA 1996 p.
24). Essa alcunha demonstracomo os estrangeiros influenciaram o movimento
operário, especialmente o santista, trazendo suas ideias.
O grande número de imigrantes e trabalhadores em Santos propiciou a
circulação de pessoas e também a criação de locais de constituição e troca de
ideias. Centros de nacionalidade, escolas de imigrantes, bibliotecas, Vilas
operárias e jornais operários entre outros, eram locais privilegiados de
encontro e de formação.
Com um número grande de imigrantes (44% da população) e com
mais de 10486 operários com o setor de serviços mais desenvolvido (ferrovias e
porto), embora as atividades industriais (976 operários) sejam secundárias,
Santos tornou-se um dos pontos privilegiados do surgimento do movimento
operário e das ideologias que o incentivaram. (PEREIRA, 1996 p. 84)
Muitas pesquisas têm tratado a respeito de como cos imigrantes trouxeram
novas ideias, especialmente ligadas a questão social e que foram os grandes
idealizadores do movimento operário, das greves e reivindicações do início da
república.
É esclarecedor nesse sentido o trabalho de Ana Luiza Jesus da Costa que
aponta as estratégias de formação e iniciativa dos operários, destacando que a
historiografia nem sempre deu a devida importância às iniciativas dos
nacionais.Citando uma das obras analisadas, afirma:
A preocupação com o papel ativo do público leitor, bem como a concepção de
que também sujeitos analfabetos poderiam ter acesso e fazer uso das notícias e
ideias veiculadas pelos jornais e revistas, nem sempre esteve presente na
historiografia da imprensa. (...) Sua abordagem faz com que a figura das
lideranças operárias, os redatores dos jornais, segundo a autora, imigrantes
europeus, em geral, obscureçam a importância do restante da classe naquele
contexto (COSTA, 2012 p. 149)
A presença de imigrantes em Santos já era percebida
desde mesmo antes do auge do café, como, por exemplo a colônia inglesa da
cidade que forma-se desde meados do século XIX por conta da instalação dede os
empresas de transporte, iluminação, telégrafo e agências de bancos(como por
exemplo, as inglesas The City of Santos Co. e São Paulo Railway responsáveis respectivamente
pelos serviços públicos e pela Ferrovia Santos-Jundiaí), as livrarias, como o
famoso Bazar Paris[3],
as peças de teatro e espetáculos que vieram por Santos, os navios e paquets que paravam com regularidade no
porto da cidade, os produtos importados que passaram a ser consumidos, são
sinais da influencia estrangeira nos hábitos e ideias dos santistas.
Contudo, há indícios também do movimento inverso: da influencia nacional
na formação dos imigrantes. É certo que correntes pensamento e ideologias de
esquerda se espalharam entre imigrantes e demais operários, mas não podemos
desconsideram a influencia que esses receberam no solo brasileiro.
Contudo, é no final do século XIX, que
atraídos pelas crescentes oportunidades de emprego existentes na cidade e nas
fazendas de café,“expulsos” de seus países pelo processo de industrialização
implantado na Europa, imigrantes, especialmente portugueses e espanhóis, passaram
a desembarcar no porto de Santos. Parte dos imigrantes que chegava ao porto
santista rumo às lavouras paulistas acabou por permanecer na cidade. Pessoas de
outras partes do país também começaram a chegar à cidade atraídos pelas
oportunidades oferecidas pela cidade em expansão.
“Em Santos, o contingente imigrante, em particular de ibéricos, foi
incorporada em serviços estratégicos ao funcionamento básico da economia
agroexportadora nos armazéns de café e docas, onde exerceram atividades de
doqueiros, estivadores, ensacadores e carroceiros” (MATOS, 2005 p.13)
Esclarecedora é a tese de Eliane Veiga Porta, que se propõe
a reconstituir a trajetória da imigração espanhola para Santos entre 1882 e
1920. Nesse período “o Brasil passava por
profundas transformações: inseria-se no mundo capitalista com a exportação de
café; politicamente entrávamos na República e, socialmente, abolíamos a
escravidão”, atraindo os imigrantes com novas oportunidades especialmente
na substituição da mão de obra utilizada nas lavouras de café. (2008 p. 10).
A autora demonstra como a partir da década de 1870 Santos
inicia sua transformação de uma cidade insalubre para uma cidade “moderna”,
voltada para o comércio e polo de atração de quem buscava oportunidades de
trabalho no porto, principalmente depois da construção do cais pela Cia. Docas
e das intervenções sanitárias e urbanísticas na cidade. Por esse motivo, parte
dos imigrantes que desembarcavam no porto santista rumo as lavouras cafeeiras
paulista acabava por permanecer na cidade.
SatieMizubuti em seu artigo “Sobre a mão-de-obra industrial no Brasil e a imigração estrangeira
1890-1930” traça importante retrato da questão imigrante, especialmente
informando que a maioria dos operários das indústrias eram imigrantes: “Em 1901, a população operária do Estado de
São Paulo foi calculada em 50.000
pessoas, das quais os brasileiros não chegavam a 10%”. Para Santos e Rio de
janeiro provinham principalmente portugueses e espanhóis, enquanto os italianos
destinavam-se para as lavouras do interior do Estado de São Paulo. (MIZUBUTI p.
3)
Muitos espanhóis imigravam com seus próprios recursos e se
estabeleciam em Santos a convite de parentes ou patrícios, já com ocupações
definidas. Geralmente exerciam as mesmas ocupações[4] que os
portugueses: “que dentro dos domínios do
porto trabalhavam como estivadores, carregadores, ensacadores, ou então no
comércio de bares, tavernas, restaurantes, pensões, hotéis e ambulantes”
(PORTA, 2008 p. 49) A maioria dos espanhóis era originária da Galícia e
exerciam a atividade de calceteiros, confeccionando muros e calçamentos em
pedras. Outros tiveram muito sucesso e trabalhavam como comissários,
representantes comerciais e importadores.
Os imigrantes trabalhavam e viviam em péssimas condições:
alto custo de vida, elevação do custo das moradias, baixos salários, longas
jornadas de trabalho, insalubridade, elevados índices de acidente de trabalho,
etc, eram frequentes. (MIZUBUTI, 2001 p. 5)
Devido às péssimas
condições de trabalho e vida em diferentes momentos foram organizados protestos
e greves por melhores condições de trabalho. Mizubutiapresenta em seu trabalho
as diferentes formas de organização operária, como o socialismo, o anarquismo e
o trabalhismo. Notadamente sobre o socialismo a autora cita Santos pioneira em
organizações desse tipo:
“Vários centros socialistas foram criados nessa época,
notadamente na cidade de Santos. Esta cidade havia sido núcleo de propaganda
republicana e abolicionista, com um razoável contingente de trabalhadores com
experiência de algumas greves. Mas, entre os precursores do socialismo, havia
muita confusão quanto aos princípios marxistas e acabou prevalecendo o
evolucionismo de Spencer, optando claramente por um reformismo, rejeitando a
ação revolucionaria. Os socialistas sempre buscaram a conciliação social. Para
eles, a organização sindical deveria servir, antes de mais nada, para conter as
greves.” (2001 p. 8)
Para assegurarem melhores condições de trabalho e vida os
espanhóis, seguindo o exemplo de outras colônias estrangeiras, reuniram-se em
associações, como o Centro Espanhol (1895), a SociedadEspanola de Repatriación
(1902) e a SociedadEspanola de Socorros Mútus y Instruccíon (1900). Diversas
instituições similares foram criadas no período para os trabalhadores
santistas, com participação de espanhóis em seus quadros , com destaque para a
Associação Comercial de Santos, a Sociedade Humanitária dos Empregados no
Comércio[5] e a
União Operária. “A presença dos espanhóis
não se restringiu o âmbito econômico, mas chegou também às lutas operárias por
condições e salários mais dignos, aspecto esse de grande importância”
(PORTA p. 80)
[1] Cidade
do litoral de São Paulo, conhecida por seu porto, o maior da América Latina e
mais importante exportador de café nos séculos XIX e XX.
[2]Órgão do Centro Socialista de Santos, publicação quinzenal que circulou
entre 1895 e 1896 entre a classe dos trabalhadores. Foi meio e divulgação de
obras e preceitos socialistas para trabalhadores e imigrantes, com discussões
de temas sociais, resumos e traduções de obras estrangeiras, além de artigos em
língua italiana.
[3]O Bazar
trazia publicações da França e de Portugal, e ficou conhecido porser procurado
por escritores e intelectuais de todo o Brasil.
[4] A respeito dessas
ocupações relacionadas ao porto, eram todas dominadas pela Cia. Docas, e
ocorria, algumas vezes divisões baseadas no fator racial, como forma de
controle.
[5] Essas duas instituições são
complementares no que tange a representação perante aos órgãos patronais e do
operariado e pequeno comércio.
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