Pular para o conteúdo principal

A CONSTITUIÇÃO MUNICIPAL DE SANTOS: PRINCÍPIOS E CONFLITOS – PARTE 2

O Regime Republicano foi inaugurado, e muitos dos seus principais defensores assumiram cargos nos governos federal e estadual, defendendo seus ideais. Podemos perceber que autores da Constituição de Santos tinham em mente uma concepção de república diferente. Tudo leva a crer que a representação de república dos constituintes santistas valorizava a idéia de autonomia do município de Santos, rebelando-se contra a ingerência de poderes externos na administração e interesses da cidade.
A partir da análise da Constituição Municipal de Santos de 1894 e de outros documentos do período, buscou-se entender como essas visões de república estiveram presentes na redação dessa Constituição e que o que legitimou sua anulação pelo Congresso Estadual.
Não se pretende fazer aqui uma análise jurídica da Constituição Política do Município de Santos, mas, como ensinado por Edward Thompson, procurar perceber a importância do estudo da lei para entender as idéias, conflitos e tendências da sociedade, atentando-se à cultura e costumes da da qual surge:
(...) as regras e categorias jurídicas penetram em todos os níveis da sociedade, efetuam definições verticais e horizontais dos direitos e status dos homens e contribuem para a autodefinição ou senso de identidade dos homens. Como tal, a lei não foi apenas imposta de cima sobre os homens; tem sido um meio onde outros conflitos sociais têm se travado (1987, p. 358)
A lei tem várias dimensões: não é apenas um resultado da expressão ideológica das camadas dominantes, mas a legislação pode revelar importantes informações sobre as disputas, imposições, reivindicações, dos grupos sociais. Dessa forma ela é ao mesmo tempo arena e “troféu” das lutas sócio-políticas. Ao estudar uma lei é importante tentar conhecê-la não apenas como uma parte do ordenamento jurídico, mas principalmente como meio de manifestação de uma prática social.
Nesse sentido a nova Constituição traz muitos dados relevantes para perceber os avanços e diferenças com relação À legislação municipal até então. Essas divergências de opinião ou posição política vão resultar nos conflitos que provocaram sua anulação. Isso mostra que havia concepções de república diferentes entre os grupos políticos de então.
Logo em seu primeiro artigo a Constituição ressalta sua intenção de autonomia:
Art. 1º O Município de Santos é autônomo na esphera de sua economia própria e nos assuntos de seu peculiar interesse. A sua soberania se estendo por todo seu território[...]
 Tal afirmação deixa bem clara a intenção de autonomia da cidade frente à ingerência dos poderes estadual e federal, ainda que não rompa diretamente com esses poderes, pois insere-se como parte do Estado de São Paulo e submissa a Constituição Federal.
A Carta traz o termo soberania - que geralmente é utilizado somente para Estados Nacionais - para referir-se ao poder de supremacia que o Estado tem sobre os indivíduos e os grupos que formam sua população, e de independência com relação aos demais Estados.
A Carta Municipal divide-se em duas partes cada uma com três seções. A Primeira trata da Organização do Município abordando temas como Assembléia Municipal e suas atribuições, as formas de feitura das leis e resoluções, depois dos cargos de Prefeito e Sub-Prefeito, sua eleição e atribuições, e termina dispondo sobre a Câmara de Recursos. A Segunda Parte refere-se às Disposições Gerais, da Revisão Constitucional e das Disposições Transitórias.
Os poderes legislativo e executivo, até então a cargo de um único órgão (a Intendência), são separados. A Constituição apresenta o Poder Legislativo exercido pela Câmara, chamada de Assembléia Municipal; e o poder Executivo exercido por um Prefeito:
Art. 14. Compete à Assembléia Municipal, além da atribuição geral de, nos limites da soberania do município, fazer leis, interpretá-las, suspende-las e revoga-las
Art. 22. O poder executivo é exercido pelo Prefeito municipal.
Foi criada ainda a Câmara de Recursos (artigos 38 a 40) órgão composto por três membros eleitos em conjunto com o prefeito, e  responsável por julgar os atos de improbidade administrativa do Prefeito, Vice-Prefeito e membros da Assembléia Municipal, tratar dos recursos interpostos relativos aos crimes cometidos no exercício dos cargos públicos e à má gestão municipal, julgar problemas com relação à inclusão no alistamento eleitoral; e reclamações sobre eleição para qualquer cargo municipal.
Nessa organização percebe-se uma tendência mais democrática que tem essa representação de administração republicana do município, pois chama o órgão legislativo, de Assembléia Municipal, com conotação democrática, além de separar o poder executivo do legislativo.
Outro ponto de favorecimento da participação democrática é o artigo 4º, parágrafo único, que estabelece a proporção de um vereador para cada dois mil habitantes indicando que os autores da Lei tinham em mente a idéia de república com mais representatividade. Vejamos:
Desde que se proceda ao recenseamento da população do município, a Assembléia compor-se-ha de tantos Vereadores quantos dous mil habitantes houver; nunca podendo, porém exceder em numero a dezoito.
A idéia de participação popular aparece também na disposição de eleição direta para Prefeito. E ainda na representação de todos os extratos da população, especialmente das minorias, como o disposto no artigo 41:
Na eleição para os cargos municipais observar-se-hao, além das condições de elegibilidade, já contidas na presente Constituição, o princípio da representação das minorias, devendo a lei eleitoral adotar para esse fim o meio mais eficaz.
A questão da cidadania e direito a voto foi contemplada na Constituição Municipal também ao estabelecer que todos os homens maiores de 21 anos seriam eleitores, assim como as mulheres sui júris, exercendo profissão honesta, sabendo ler e escrever e residindo em Santos há mais de um ano.
Note-se que tal disposição foi muito avançada para o período já que o primeiro país a prever o voto das mulheres[1], a Nova Zelândia só o havia feito no ano anterior, ou seja, 1893, e que no Brasil o voto feminino só foi admitido com a Constituição Federal de 1934!
Podemos perceber na Lei de 1894 ainda um certo cuidado na transparência da administração e nos cuidados éticos com os gestores da cidade, como o disposto no artigo 10 que determina que o Prefeito não poderia ser empregado público, nem ter qualquer ligação com empreiteiras ou empresas que tenham contrato com a municipalidade.
Também há a preocupação em evitar as nomeações e exonerações de funcionários municipais por critérios de interesses políticos. Isso aparece no artigo 46 que estabelece que os cargos municipais de Tesoureiro, Secretário, Chefe de Secção, etc, seriam atribuídos somente por concurso público, e que depois de trabalhado mais de 5 anos, esses funcionários só poderiam ser demitidos por meio de processo administrativo, e depois de comprovada a incapacidade física, intelectual e moral para o exercício do cargo público.
Depois da leitura da Constituição Política de Santos, pode-se perceber que muito de seu conteúdo traz as representações republicanas dos seus autores e signatários, notabilizando preocupações de grande avanço para o período, como o voto feminino, a preocupação com a probidade administrativa e a representação das minorias


[1] Anos depois Vicente de Carvalho irá escrever os estatutos do Liceu Feminino de Santos.

Comentários